Crítica A Casa do Dragão | Você não precisa de dragões quando tem um bom roteiro
Por Durval Ramos • Editado por Jones Oliveira | •
A Casa do Dragão é um belíssimo exemplo de que um bom roteiro é capaz de afastar todas as sombras. Espanta o fantasma da incerteza de não ser tão bom quanto a série original, dispersa a dúvida de que não havia nada de novo para mostrar e ainda joga para longe a muleta do saudosismo. A nova produção da HBO é a prova de que uma boa história é tudo o que queremos.
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Parece o tipo de coisa óbvia para se dizer, mas que o prequel/spin-off de Game of Thrones precisou provar semana após semana. A ideia de revisitar Westeros séculos antes dos eventos do seriado original geraram desconfiança e até alguns olhares desconfiados, mas não demorou para que as qualidades desse roteiro em específico deixassem todas essas sombras para trás.
A história centrada nos Targaryen voa alto com suas próprias asas, sem depender desse apelo saudosista do fã. Ainda que se apoie em algumas características que nos são familiares, tudo aquilo que há de melhor em A Casa do Dragão cheira a novo e só prova que um roteiro bem escrito é mais poderoso do que dezenas de feras aladas cuspidoras de fogo.
Personagens que dão vida ao universo
O grande mérito da nova série da HBO é ter um roteiro que serve a seus personagens. É uma lógica diferente daquela que nos acostumamos em Game of Thrones, em que tudo girava em torno da grande trama que envolvia aquele universo. Por aqui, as coisas têm um escopo muito menor e, por isso, tudo se torna bem mais envolvente.
Ao deixar aquela lenga lenga de salvar o mundo, o inverno que nunca chega e das ameaças lendárias que estão marchando para acabar com todos, A Casa do Dragão é literalmente parente brigando por terreno. São aquelas microintrigas familiares que ganham um escopo muito maior porque há um reino e dragões no meio da disputa.
E é aí que esse roteiro funciona tão bem. Ao ser uma história que gira em torno de seus personagens, a série se dedica a construí-los e a desenvolvê-lo de forma cuidadosa de modo que você se afeiçoe, tome partido e se envolva na briga. Ao mesmo tempo, trabalha uma complexidade em todos os envolvidos para que ninguém seja inteiramente bom ou mau.
O resultado disso é que, a cada episódio, o espectador se questiona se está torcendo para as pessoas certas. Isso é muito bem representado na relação entre Rhaenyra e Alicent, as amigas que se tornam grandes rivais ao longo da temporada.
Enquanto a princesa Targaryen é apresentada como a heroína injustiçada na primeira parte da história, a segunda fase já a transforma em alguém muito mais dúbio e que toma decisões reprováveis. Da mesma forma, a herdeira Hightower está longe de ser uma Cersei e até mesmo as suas ações mais reprováveis são totalmente lógicas e justificáveis.
E é ao nos encurralar nesses dilemas que A Casa do Dragão prova o quanto seu roteiro é bom. E não só por brincar com nossas emoções e percepções, mas por saber conduzir isso tão bem até mesmo nos menores detalhes.
É graças a esse ótimo desenvolvimento de personagem que um rei fraco que passa a temporada inteira apodrecendo pouco a pouco protagonize uma das melhores cenas do ano na TV. Uma boa história é essa que sabe dar peso a tudo o que é apresentado e amarrar todas as cenas e núcleos, entrelaçando-as para criar uma verdadeira trama em que tudo tenha seu devido peso e nada seja jogado ali por acaso.
Toda essa construção é tão bem executada que, no fim das contas, os dragões mal são importantes. Quando a série foi anunciada, parte do público se empolgou com a ideia de finalmente ver dragões em ação, já que esse período é o auge da dinastia Targaryen. Contudo, à medida que a temporada avança, a gente percebe que eles não são importantes e o que a gente quer mesmo ver é como Rhaenyra, Daemon, Alicent e os demais personagens vão agir (e reagir) em seguida.
Atuações que valem ouro
Embora o roteiro de A Casa do Dragão seja o que há de mais valioso na série, ela não seria a mesma coisa sem uma atuação à altura que segurasse o peso que a história carrega. E, nesse sentido, a escalação não poderia ser mais acertada para cada um dos personagens.
Voltando mais uma vez à dupla Rhaenyra e Alicent, a escolha da HBO para as atrizes nas duas fases da trama ilustra bem o quanto os atores foram ótimos por aqui. Milly Alcock e Emily Carey trazem esse olhar quase ingênuo para as protagonistas que contrasta muito com o que Emma D’Arcy e Olivia Cooke apresentam — e que só evidencia tanto a ruptura existente entre elas como a própria subversão de expectativa que o roteiro apresenta ao destino delas.
Um caminho fácil e bastante óbvio seria se apoiar naquilo que Game of Thrones já apresentou e trazer novas versões de Daenerys, Jon Snow e Ned Stark. Só que nenhum dos atores cai nessa armadilha e o que temos são interpretações bem diferentes daquelas que a série clássica nos apresentou — e que só reforça o quanto o brilho aqui é único.
O maior exemplo disso é Daemon (Matt Smith), que muita gente imaginou como sendo uma versão Targaryen de Jaime Lannister. Não apenas por seu tesão por parente, mas por ser esse cafajeste que conquista o público mesmo cometendo alguns crimes hediondos pelo caminho. Em A Casa do Dragão, o personagem faz tudo isso, mas com uma personalidade bem distinta do amante de Cersei a ponto de a comparação rapidamente se perder.
É claro que há atuações mais inspiradas do que as outras. Os príncipes Jacaerys (Harry Collett) e Lucerys (Elliot Grihault) realmente não têm a mesma força de um Aemond (Ewan Mitchell), mas a série também sabe tirar proveito disso para surpreender o espectador. O exemplo mais claro é o do próprio Rei Viserys (Paddy Considine), que passa boa parte da temporada bastante comedido e sendo o rei fraco que todo mundo diz, mas que entrega uma última participação muito forte.
Essa subversão é algo que acontece em outros momentos, incluindo alguns bem mais sutis. A transformação de Aegon (Tom Glynn-Carney) do príncipe que não queria governar ao rei que se sente amado pela primeira vez é de uma força que justifica toda a treta que vem em seguida — ainda que nenhuma palavra sobre isso seja dita.
Longe de todas as sombras
Em uma época em que os estúdios parecem achar que basta derramar milhões de dólares em produção para criar belos visuais e que isso basta, A Casa do Dragão nos lembra que uma boa história é a base de tudo. Um roteiro consistente que sabe trabalhar seus personagens, sua trama e seus atores é algo que dinheiro nenhum pode substituir.
E é isso que faz com que a nova série da HBO afaste todas as sombras que pairavam sobre ela antes da estreia. Sem depender da nostalgia e apostando naquilo que ela realmente tem de melhor, é fácil esquecer que estamos diante de uma série derivada de Game of Thrones.
Tanto que é até injusto dizer que “GOT voltou”. Apesar das tentativas de amarrar as duas séries, A Casa do Dragão consegue se provar com facilidade como algo novo e que caminha com suas próprias pernas e alça voos por seus próprios méritos a ponto de poder existir de forma independente.
A Casa do Dragão pode ser assistida na HBO Max.