Catar conchinhas no Brasil é crime? Entenda
Por Fidel Forato • Editado por Luciana Zaramela |
Para muita gente, é normal catar conchinhas na praia como uma lembrança de um dia gostoso nas férias. No entanto, esse gesto aparentemente simples pode ter inúmeras consequências no ecossistema marinho. Por isso, não é recomendado pegar pedaços de conchas e nem de estrelas-do-mar, embora isso não seja propriamente um crime no Brasil.
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De forma diferente, alguns países proíbem a coleta de conchas de molusco, mesmo vazias, na praia, como ocorre na Itália, na França e até em alguns pontos dos Estados Unidos. Nestes locais, a coleta é normalmente autorizada apenas para fins científicos ou educacionais.
Inclusive, não levar conchinhas da praia como souvenir é uma prática do turismo ecológico e sustentável — isso significa que os visitantes não depredam o meio ambiente, enquanto contribuem para a sua preservação. No extremo oposto, há casos documentados de perda de diversidade e redução no número de conchas por causa da ação de turistas.
Catar conchinhas no Brasil é crime?
No país, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) é quem orienta a não retirada das conchas de seu habitat natural, as praias brasileiras.
"Não colete nada”, afirma o ICMBio, em nota. “Pedaços de conchas, corais, ouriços e estrelas-do-mar servem de abrigo e devem permanecer em seu ambiente natural. Leve da praia somente memórias e fotografias”, acrescenta.
Além disso, o instituto orienta que as pessoas não comprem “artesanatos feitos com conchas ou corais mortos”, já que “retirar essas estruturas da natureza prejudica a dinâmica do ambiente”.
Por dentro do direito ambiental
Para entender se catar conchinhas na praia seria crime ou não, é preciso recorrer à Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998), especialmente aos artigos 33, 34 e 36:
- Artigo 33: "provocar, pela emissão de efluentes ou carreamento de materiais, o perecimento de espécimes da fauna aquática existentes em rios, lagos, açudes, lagoas, baías ou águas jurisdicionais brasileiras";
- Artigo 34: "pescar em período no qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados por órgão competente";
- Artigo 36: "para os efeitos desta Lei, considera-se pesca todo ato tendente a retirar, extrair, coletar, apanhar, apreender ou capturar espécimes dos grupos dos peixes, crustáceos, moluscos e vegetais hidróbios, suscetíveis ou não de aproveitamento econômico, ressalvadas as espécies ameaçadas de extinção, constantes nas listas oficiais da fauna e da flora".
Com base nessa questão jurídica, o Canaltech consultou advogados para entender a melhor maneira de interpretar a lei. "A mera coleta de conchas vazias para fins pessoais não costuma ensejar a responsabilidade criminal sobre o fato, embora a orientação geral dos órgãos de proteção ambiental seja a de evitar esse tipo de prática, a fim de evitar eventuais prejuízos ao ambiente marinho", afirma Scarlett dos Santos, advogada especializada em Direito Ambiental do escritório Razuk Barreto Valiati e mestranda em Direito pela UFPR.
"Em regra, a coleta [de conchas vazias] não é crime", concorda Ricardo Murilo da Silva, advogado especialista em direito ambiental do escritório Flávio Pinheiro Neto Advogados. "Alguns artigos, especialmente o artigo 33, poderiam levar a interpretação de uma prática de crime, mas, em regra, não é crime. É claro que isso pode ter interpretações diversas", afirma. Entretanto, "pelo princípio da insignificância, retirar uma concha do ambiente marinho, em tese, não vai causar um dano ambiental que justifique o reconhecimento de um crime", acrescenta.
"O mesmo entendimento do princípio da insignificância se aplica aos moluscos [as conchas ainda habitadas]", salvo seja uma espécie em risco de extinção ou na época do defeso — período em que a caça é proibida —, explica Ricardo. Se for uma coleta predatória ou para fins comerciais, a questão pode ser analisada por outros critérios.
De forma diferente, a advogada Scarlett compreende a questão dos moluscos como uma possível infração, com base no artigo 34. Se essa questão pode gerar interpretações diversas, ambos concordam que a venda de corais e artesanato com corais é crime no Brasil. Independente da lei, o melhor é deixar as conchinhas na praia.
Turismo e catar conchas?
Apesar de nenhum turista necessariamente ir preso por catar conchinhas no Brasil, vale a consciência ambiental de cada um. Na praia Llarga, na Espanha, vem um dos piores exemplos do impacto dessa coleta indiscriminada de conchas.
Por lá, pesquisadores da Universidade da Flórida e da Universidade de Barcelona analisaram os níveis de conchas na praia em dois períodos diferentes: 1978 a 1981 e 2008 a 2010. Nestas três décadas de pesquisa, o turismo aumentou quase três vezes na região, enquanto o urbanismo e a pesca comercial se mantiveram praticamente inalterados.
Publicado na revista PLOS One, o estudo revela que, com o aumento do turismo e o hábito de catar conchinhas, o número médio de espécimes caiu drasticamente, de 1,5 mil para 578.
O interessante é que os autores também observaram que, dependendo do mês que se analisava, existiam mais ou menos conchas nas praias. Por exemplo, nos meses do verão europeu, entre julho e agosto, os níveis de conchas eram bem menores.
Função das conchas no ecossistema
“As conchas são admiráveis, porque desempenham múltiplas funções em ecossistemas naturais, desde a estabilização de praias até materiais de construção para ninhos de pássaros [em último caso]”, explica Michal Kowalewski, pesquisador do Museu de História Natural da Flórida e um dos autores do estudo espanhol, em nota.
Afinal, as conchas “vazias” — após serem deixadas pelos moluscos — podem funcionar como uma superfície de fixação para algas, plantas marinhas, esponjas-do-mar e outros organismos.
As conchas também funcionam como um lar para os caranguejos-eremitas — com a falta de conchas disponíveis, estes crustáceos já foram observados usando materiais plásticos, como tampa de garrafa PET. Os peixes também podem usá-las como forma de esconderijo contra predadores.
Por fim, as conhcas desempenham um papel importante no fluxo de minerais no ambiente marinho. Como são basicamente compostas por carbonato de cálcio (CaCO3), ao longo dos anos, elas vão se dissolvendo e o composto é reciclado por outras criaturas, incluindo novos moluscos.
Então, na próxima ida à praia, a melhor forma de obter uma boa lembrança é curtir o momento presente e fazer inúmeras fotos daquele dia, mas sem retirar nenhuma “lembrancinha” ou conchinha da areia da praia.
Fonte: ICMBio, Museu de História Natural da Flórida e PLOS One