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Saiba como a guerra na Ucrânia vai afetar o estudo da matéria escura do universo

Por| Editado por Patricia Gnipper | 03 de Março de 2022 às 13h20

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C. Carreau/CXC/D. Coe/J. Merten/Heidelberg/Bologna
C. Carreau/CXC/D. Coe/J. Merten/Heidelberg/Bologna

A agência espacial russa Roscosmos decidiu suspender todos os lançamentos com seus foguetes Soyuz na Europa, em resposta às sanções da União Europeia após a Rússia invadir a Ucrânia. Essa decisão afeta lançamentos de novos instrumentos científicos, como o revolucionário telescópio espacial Euclid, da Agência Espacial Europeia (ESA).

Para entender melhor a missão do Euclid, seus bastidores e as implicações da decisão da Roscosmos, o Canaltech conversou com Arthur Loureiro, cientista que faz parte da missão. Será que o lançamento ainda vai acontecer? Existe outro foguete que possa realizá-lo? Essas e muitas outras perguntas foram respondidas no papo que você confere na íntegra abaixo.

A importância do telescópio Euclid

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Programado para ser lançado neste ano, o Euclid consiste em um telescópio espacial que, assim como o James Webb, orbitará no ponto de Lagrange L2. Sua missão é observar e mapear as galáxias do universo observável no infravermelho próximo, para investigar a matéria escura.

Além de possibilitar um levantamento dos formatos das galáxias mapeadas — o quão ovais ou circulares elas são —, o Eudlid ajudará a determinar propriedades estatísticas da distribuição da matéria escura e matéria comum das galáxias. Isso porque a luz de galáxias mais afastadas é distorcida pela gravidade dos dois tipos de matéria presentes nas galáxias mais próximas.

Um dos instrumentos, chamado VIS, observará o universo na luz visível, e será usado para estudar essas distorções sutis das imagens de galáxias, geradas pela gravidade de objetos massivos. O VIS vai coletar imagens de galáxias distantes com um detalhe sem precedentes — sua resolução é de 600 megapixels, possibilitada por um mosaico de 36 sensores CCD.

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Outro instrumento, chamado NISP, observará no infravermelho para medir com precisão a distância a que estão essas galáxias. Isso ajudará a construir o maior e mais preciso rastreio tridimensional do universo, e mostrará várias épocas história do cosmos, como ele evoluiu, e a que velocidade se expande.

Esses dados também vão contribuir com os estudos sobre a energia escura, à qual é a atribuída a responsabilidade pela expansão do universo. Membros da equipe do Euclid afirmaram que ele terá “uma qualidade de imagem quase tão boa como o telescópio Hubble mas multiplicada 1000 vezes pela área do céu”.

A decisão da Rússia vai atrasar o Euclid?

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Infelizmente, o lançamento deve atrasar, no mínimo, alguns meses, devido à situação entre a Roscosmos e a União Europeia. Para usar outro foguete, serão necessários vários ajustes. “Cada foguete ‘treme’ de uma maneira diferente, dependendo do tamanho e de como ele é construído”, explicou o cosmólogo Arthur Loureiro, parte da equipe do Eudlid.

Além de ter sido construído o Euclid com a Soyuz em mente, preparado para a quantidade de tremor desse foguete específico, o telescópio também foi testado para garantir que sobreviverá às suas turbulências. Por isso, caso seja preciso lançá-lo em outro veículo, os engenheiros terão que adaptá-lo novamente, o que pode levar vários meses.

Apesar das preocupações, o Euclid não parece correr o risco de ser cancelado, ao menos por enquanto. Há boas chances um lançamento no foguete Ariane 6, desenvolvido pela Agência Espacial Europeia para substituir o antecessor Ariane 5 — o problema é que ele ainda não está concluído.

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Arthur Loureiro conversou com o Canaltech para explicar melhor sobre o Euclid e sobre como a decisão da Roscosmos pode afetar a astronomia nos próximos meses. Loureiro é formado em física e fez o doutorado em cosmologia observacional na University College London. Atualmente ele é cientista sênior no Euclid science ground segment (segmento científico de solo).

O futuro do telescópio espacial Euclid

Canaltech: Qual é a missão do Euclid?

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Arthur Loureiro:O Euclid é uma missão espacial da ESA que tem o objetivo de mapear o universo escuro… entender o que é e como se comporta a energia escura e também, ao mesmo tempo, mapear a distribuição de matéria escura do universo.

Ele vai fazer isso através de duas técnicas principais, que são a fotometria, observando no infravermelho próximo, e a espectroscopia de baixa resolução, que separa a luz em um “prisma” e mostra os elementos que tem nas estrelas.

Através disso a gente pode medir as distâncias entre as galáxias através do redshift, que é uma “distorção” da luz para o vermelho por causa da expansão do universo — quanto mais longe, mais pro vermelho ela vai.

CT: Qual é seu trabalho no Euclid?

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AL: No momento, meu trabalho no Euclid aqui em Edimburgo é de sensibilidade de medida de formato de galáxias. Quando temos matéria escura na frente de galáxias que estão ao fundo, a massa [da matéria escura] vai distorcer o espaço-tempo, por causa da gravitação, então a luz das galáxias que estão ao fundo vai ser “lenteada” por essa matéria escura.

Isso causa o efeito chamado lenteamento gravitacional fraco, que são pequeninas distorções no formato das galáxias que estão ao fundo de uma distribuição de matéria (seja matéria escura ou matéria comum). Uma das maneiras que o Euclid vai estudar o universo escuro é através desse lenteamento, e outra é pelo distanciamento das galáxias.

Então meu trabalho é medir a sensibilidade dos métodos de medir o formato das galáxias, o quão elípticas elas são. Na University College London eu também trabalho com a parte que vem depois dessa medição. O quão esses formatos estão correlacionados nos dá a informação de quanta matéria escura [existe na região], de como é essa distribuição de matéria escura do universo.

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Esse [as medidas] é o produto final do que o science ground segment — que é a parte ligada à ESA — vai fazer. Aí tem o science working groups, que é a parte que faz a ciência mais elaborada.

CT: Como a decisão da Rússia afeta a missão?

AL: O Euclid foi construído com a Soyuz em mente, ele foi testado — a gente passou agora no final do ano passado pelos testes de tremor, que tremeram o telescópio para simular exatamente o lançamento na Souyuz. Tava quase prontinho para subir. Era para ser lançado em março de 2023, era a última data que a gente tinha.

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Agora, certamente ele não vai na Soyuz e a gente vai ter que voltar “meio que” para prancheta de desenho, ver o que precisa mudar, o que não precisa mudar, refazer os testes de balanceio… e parece que as estimativas otimistas da ESA são em torno de oito meses a 1 ano [de atraso].

Já se fala de ter o [foguete] Ariane como o backup faz um tempinho porque o projeto está um pouco atrasado. Quando eu estava no meu mestrado se falava no lançamento para 2015, quando comecei meu doutorado falavam de lançamento para 2017. Essas coisas atrasam. Sempre vai encontrando o problema ao longo do caminho.

Então o lançamento com a Soyuz atrasou tanto que a ESA teve que refazer um novo contato com eles, e [pelo que ouvi] o pessoal da Roscosmos cobrou muito mais. Então a ESA já não tava muito feliz. Também ia ser um dos últimos lançamentos com a Soyuz, até porque eu acho que os russos estão para aposentar a Soyuz e vão colocar algo novo no lugar.

E aí o que aconteceu foi isso, a gente acordou com o pronunciamento da Roscosmos de que eles vão retirar todo o pessoal deles na Guiana Francesa, onde acontece a maioria dos lançamentos supervisionados pela ESA. Foi uma retaliação às sanções que a União Europeia e os EUA estão impondo na Rússia.

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CT: Então o Euclid ainda pode ser lançado pelo Ariane?

AL:É, eu acho que a gente vai cair no plano B, que é o Ariane 6, mas aí tem esse probleminha: ele é um foguete bem novo ainda e não foi muito testado, e o Euclid tem certos requerimentos de quantos lançamentos de missões precisam ser feitas com sucesso. O Ariane 6 ainda não tem nenhum, ainda está em processo final de desenvolvimento.

O que se falou bastante hoje é que com isso a ESA vai passar a dar ainda mais prioridade para o desenvolvimento do Ariane 6. Particularmente [risos] eu estou um pouco nervoso, eu ficaria muito mais tranquilo em voar na Soyuz porque é uma tecnologia que não deixa a desejar, é uma tecnologia robusta, que funciona.

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CT: Há chances do lançamento não acontecer?

AL:A gente sabe que do lado da ESA as coisas estão garantidas, não é como se fosse afetar o projeto. Até porque pegaria muito mal cancelar um projeto que tá aí [há muito tempo]. O projeto tá em concepção já desde antes de 2011.

Por um lado é bom, dá mais tempo para realizar as partes cruciais, houve alguns problemas que a gente teve durante os testes e talvez agora com esse atraso a gente possa rever melhor.

Do meu lado, quem paga o meu salário é a Agência Espacial Britânica, e desde o Brexit se tem incerteza de como ela vai lidar com o Euclid. Nossos contratos são sempre muito curtos, nunca para mais de um ano, a agência gosta de ficar revisando todo ano se vai dar dinheiro para o projeto ou não.

O que nos assusta um pouquinho no momento é que acabamos de passar por uma dessas revisões de orçamento. Mas o Reino Unido o contribuiu muito para o Euclid, então eu acho que ela ainda vai continuar financiando isso.

CT: Quando saiu o anúncio da Roscosmos você chegou a comentar no Twitter “será que ainda tenho um emprego?” Mas parece que vai dar tudo certo, né?

AL:É, eu to tentando no momento ser otimista, pelo menos a gente vai ganhar um pouco mais de tempo para aperfeiçoar as melhorias que temos preparado para o Euclid. Acho que vai ficar tudo tranquilo.

Primeiro bateu aquele pânico, a ESA não falou nada inicialmente, mas ela se pronunciou hoje [28/02]. Agora é só uma questão de tempo até a Agência Espacial Britânica se pronunciar.