Crítica | Tim Maia é muito mais do que "o maluco da Primavera"
Por Sihan Felix |
Filmes biográficos musicais quase sempre apresentam heróis falhos muito além de imperfeições humanas. São personagens, na maioria das ocasiões, nocivos para si mesmos — podendo o ser para quem está ao seu redor também. Ao mesmo tempo, a arte, que carrega o heroísmo por meio da armadura da genialidade, ameniza a selvageria das atitudes. Deve ser difícil fugir disso em uma adaptação da figura de Tim Maia — talvez impossível.
Por outro lado, a mesma arte que tem poder de suavizar tem, igualmente, força para dar voz à tal selvageria. Às vezes, com muita originalidade (como na obra-prima Amadeus — de Milos Forman, 1984). Tudo isso no sentido de que um artista nem sempre é cruel consigo externamente e, internamente, um poço de sensibilidade. Este é o clichê, o estereótipo, que vai praticamente de Beethoven (e as cinebiografias de sua vida) a Freddie Mercury (vide Bohemian Rhapsody). Em Tim Maia, de todo modo, isso é muito claro e não demora para ficar explícito.
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Atenção! Esta crítica contém spoilers sobre o filme!
De peito aberto
São muitas as histórias na vida do Tião da Marmita e, a partir delas, o roteiro de Antonia Pellegrino (de Bruna Surfistinha) e Mauro Lima (de João, o Maestro) até tira — e muito — o peso da abordagem. Por mais que não se esquivem da inserção das drogas e não fujam da criação de cenas mais pesadas, como a que o já famoso cantor e compositor bate em Janaína (Alinne Moraes), há uma sensação de leveza na forma de contar aquilo tudo.
A começar pela narração em off de Fábio (Cauã Reymond), Tim Maia está sempre cercado por uma aura suave. A voz de Reymond transmite carinho desde o princípio, tanto através do texto quanto de sua interpretação. Aos poucos, ele repete "meu amigo" como se abrisse caminho para que Tião desenvolva uma amizade também com o espectador. E, em certo momento, parece abrandar os atos do protagonista, justificando as brutalidades ao dizer que "a carcaça dura de rinoceronte protegia um coração mole e agigantado".
Tudo, claro, regado à música do problemático gênio que, por meio da simplicidade, fazia ecoar a voz. Nesse sentido, a cena em que encontra Nara Leão (Mallu Magalhães) cantando em um bar acompanhada por um violonista é fundamental para o entendimento do quão simples e sincero era aquele homem. Ao dizer para o amigo Erasmo Carlos (Tito Naville) que viu mais acordes em metade da música tocada pelo violonista do que eles fizeram na vida inteira, o ainda jovem Tim desliga-se de uma certa elite musical (a participação de Magalhães é quase metalinguística) e se mostra de peito aberto para o povo.
"Vamos falar de amor, somente de amor"
Apesar das sutilezas do roteiro, capaz de fomentar subtextos de muita força, Tim Maia tem suas fraquezas e elas podem ser dúbias. Se a dita narração de Reymond está carregada da competência do ator, simultaneamente ela parece escrita em uma pegada essencialmente novelesca. Embora seja um recurso que enriquece o filme em alguns momentos, especialmente ao criar laços de afeto do público para com o personagem título, em muitas oportunidades ela é expositiva em excesso. Afirmando sobre a morte de alguém ao mesmo tempo em que é exposto o funeral da pessoa por exemplo, o texto acaba por se ligar aos programas televisivos que precisam ressaltar alguns elementos em uma história muito mais longa.
Dessa maneira, dividido em minissérie, como aconteceu no ano seguinte ao seu lançamento nos cinemas, o trabalho de Lima talvez encontre um lugar mais adequado. A mão do próprio diretor tem um caráter televisivo ao se manter em planos uniformes, como se o planejamento mais detalhado do que causar com suas escolhas (com sua decupagem) não fosse tão necessário. É tanto que, quando essa mão da direção resolve ser mais efetiva e ceder uma visão sobre o texto, surgem cenas a partir de planos que dizem muito e que, por isso, poderiam ser mais longas.
Tim Maia, no final das contas, resiste muito por causa da história dura do artista retratado. Aliás, Robson Nunes e Babu Santana (o jovem e o experiente Tim) são vitais para que o filme seja muito mais do que — em análise fria — é de fato. Enquanto Nunes interpreta a selvageria de alguém que carrega o peso de um mundo parcial com suas origens e aparência, Santana traz a sensibilidade de um homem afogado em si mesmo — inclusive pelo seu passado sofrido.
É uma pena, portanto, que o ponto de vista, tanto do roteiro quando da direção, não traga o peso das situações para o primeiro plano e prefira manter — tanto pela leveza da narração quanto pela aparente alegria das músicas (com exceções românticas) — tudo nice. Inclusive, até a cena mais forte pode receber traços de leveza, com a conversa dos dois policiais após retirarem a metralhadora do colo de Tim: "É o maluco da Primavera, hein?!" "Minha mulher é fãzona dele."
A verdade é que Tim era (e permanece sendo), sim, o tal "maluco da Primavera", mas ele, ali, está gritando: "Sai, chuva!" As nuvens nubladas, no caso, eram a mente dele mesmo. E, ao cantar que "hoje o céu está tão lindo", aquele homem cantava (e canta) sobre a sensação de liberdade que, provavelmente, ele nunca sentiu com muita clareza.
Meu amor,hoje o céu está tão lindo.Sai, chuva!Hoje o céu está tão lindo.É primavera.
Tim Maia está disponível no catálogo da Netflix. O filme também pode ser assistido no streaming do Telecine e no Now. Para compra, pode ser adquirido no iTunes da Apple e no Google Play Filmes.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech