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Crítica | Surpreendente e perturbador, The Lodge é uma obra-prima instantânea

Por| 03 de Junho de 2020 às 09h19

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Hammer
Hammer

Há uma grande diferença entre plágio e referência. No plágio, geralmente algo não tão bom tenta copiar algo que teve sucesso e a sensação de cópia é óbvia, sobretudo porque parece deslocada e não surte o efeito desejado. A referência, por outro lado, é uma homenagem, o reconhecimento de que algo foi icônico e sua inserção no contexto de outra obra surte o efeito de um easter egg para os fãs.

The Lodge tem muitas referências, fazendo com que a nostalgia e a empolgação para fãs de terror vá muito além do aparecimento da logo da Hammer. Há muito de O Iluminado (1980, Stanley Kubrick) e Hereditário(2018, Ari Aster) em The Lodge, além de uma sensação que lembra muito Boa Noite, Mamãe (2014) — e isso não é por acaso, já que os dois filmes compartilham os mesmos diretores: Severin Fiala e Veronika Franz. É como se Charles Manson, A Bruxa (2015, Robert Eggers), A Visita (2015, M. Night Shyamalan) e Hereditário encontrassem Boa Noite, Mamãe em O Iluminado para um jantar bizarro. O resultado: terrível para os personagens, um deleite para os fãs.

Se em Boa Noite, Mamãe Fiala e Franz haviam criado terror através da frieza dos personagens, que é uma tremenda homenagem ao clássico austríaco Violência Gratuita (1997, Michael Haneke), em The Lodge eles provam que também são capazes de fazer o oposto, um terror absolutamente passional, em que sentimentos ruins se proliferam e transbordam em atitudes inimagináveis.

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Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.

Terror raiz contemporâneo

Desde 2014, quando foi lançado A Mulher de Preto 2 (Tom Harper), estávamos sem um filme Hammer e The Lodge chega fazendo uma homenagem autoral que casa perfeitamente com a história da produtora (parece que estamos vivendo uma nova era do filme de horror, com a Blumhouse, a A24 e, quem sabe, a Hammer encabeçando esse trecho da história do cinema). Mesmo que não se firme como um, tive com The Lodge a mesma sensação que tive com A Visita: um clássico instantâneo do terror, mas que corre o risco de não se popularizar, mesmo entre os fãs do gênero. Enquanto A Visita marcou o retorno de M. Night Shyamalan, The Lodge parece uma declaração de que Fiala e Franz poderiam fazer ainda melhor o que desenvolveram em Boa Noite, Mamãe.

Logo a princípio, The Lodge introduz um grupo de fanáticos religiosos, cujo líder lembra um pouco Charles Manson e a ideia de suicídio coletivo remete ao trágico fim dos seguidores de Jim Jones. A casa de bonecas, sendo um dos elementos mais revisitados pelas imagens, remete a inúmeros filmes e minha memória mais antiga desse tema é Amityville 8: A Casa Maldita (1996, Steve White), mas, como The Lodge acaba espantando a paranormalidade e a casa de bonecas se revela apenas como o local de planejamento das crianças, Hereditário parece ser uma referência mais lógica que os demais filmes com casas de bonecas.

A sensação de A Visita entra justamente nessa ideia de enganar o espectador para que ele pense ser algo sobrenatural e, ao final, não ser, o que fica ainda mais orgânico ao enganar também Grace (Riley Keough). O peso que a religião pode ter sobre uma pessoa lembra muito a relação familiar que vimos em A Bruxa e ver todo mundo enlouquecendo em um local isolado pela neve remete instantaneamente a’O Iluminado. The Lodge não nega as referências e insere filmes amplamente reconhecíveis dentro da trama, com Grace e as duas crianças assistindo a'O Enigma de Outro Mundo (1983, John Carpenter) e, posteriormente, Uma Noite Mágica (1998, Troy Miller). Trata-se de um pastiche do terror, mas não no sentido depreciativo da palavra. Pelo contrário, pastiche no sentido Tarantino, no sentido de cineastas que são cinéfilos e geniais ao ponto de criar um pastiche que, apesar de todas as referências, é absolutamente autoral e único.

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Além das referências

Mesmo para quem já viu Boa Noite, Mamãe, Fiala, Franz e o corroteirista Sergio Casci desenvolvem uma ideia tão complexa e macabra que somos levados a acreditar na inocência das crianças, apesar de tudo parecer no mínimo estranho. A ideia de mostrar algumas maldades menores (se comparadas à do grande plot twist), como o altar para a mãe falecida, ajuda a evocar nossa empatia com as crianças que ainda estão de luto, mas, ao mesmo tempo, define isso como o teto do quão maus eles podem ser e, quando todas as coisas da casa desaparecem, inclusive o altar, somos convencidos de que eles não são os responsáveis por tudo aquilo. O falso-enforcamento é a cereja do bolo.

Por muito tempo Boa Noite, Mamãe me deixou com a sensação de que se tratava de um filme que queria mostrar que as crianças nem sempre são inocentes, que elas podem ser más, como a dupla de Violência Gratuita. The Lodge traz melhor a questão das crianças e amplia a maldade para um nível aterrador: é justamente pela inocência, por serem incapazes de compreender a magnitude de seus atos e as possíveis consequências, que as crianças podem ser terríveis de um jeito que não conseguimos antecipar. Quando Mia (Lia McHugh) enfim desaba e confessa que tudo o que fizeram foi pela mãe deles, somos tomados simultaneamente por um sentimento de terror e compreensão, o que é uma mistura absolutamente difícil de ser criada. O filme aplica isso aos três personagens ao mesmo tempo.

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Os irmãos são culpados pelo plano que armaram, mas entendemos que são crianças sofrendo um luto intenso, agravado por uma concepção religiosa, segundo a qual a mãe não vai para o céu por ter cometido suicídio. Grace, por outro lado, parece ser uma pessoa completamente diferente do que era no passado, se esforçando para ter uma vida normal, mas é vítima dos seus traumas e das crianças, tornando-se uma verdadeira assassina dentro de uma concepção que fazia todo sentido, o seu discurso fanático religioso. Todos são e não são vítimas, são e não culpados ao mesmo tempo. E é essa impossibilidade de definir o que os personagens são que agrega profundidade ao filme.

The Lodge é, ainda, muito mais que uma história muito bem contada. O tripé direção, arte e fotografia é perfeito na escolha dos enquadramentos, isolando os personagens e mostrando o desconforto de uns com os outros. A temperatura de cor e o aconchego de uma casa de madeira consegue ser subvertido pelo modo como os ícones religiosos são mostrados e mesmo uma simples pintura de Nossa Senhora parece estar amaldiçoando ao invés de abençoar, ao passo que a parede manchada atrás do crucifixo concede algo sombrio para o ícone religioso.

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Com um final que deixa os eventos em aberto para que criemos nossa própria versão, The Lodge é encerrado em um dos ápices de tensão, deixando o espectador na mão de uma forma incrível: frustrados, porém possivelmente empolgados (não com a desgraça alheia, claro, mas com a tensão que gostamos de ter quando vemos terror e suspense). The Lodge é a prova de que Severin Fiala e Veronika Franz merecem ser citados ao lado de nomes que já são ícones do terror contemporâneo: Jordan Peele, Robert Eggers e Ari Aster.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech