Crítica | Hereditário: O pavor da dúvida e o maior mistério da vida
Por Sihan Felix |
O medo do desconhecido é quase um clichê do ser humano. Muitas vezes, repete-se aquilo que já se conhece pelo simples receio de não gostar do novo. Isso vai desde a dúvida entre experimentar um suco que nunca tomou para saber se vale a pena ou pedir novamente o preferido, a uma das maiores dúvidas que se pode ter: O que há após a morte? Se a morte fosse somente (e incrivelmente) o princípio de uma felicidade sem fim, ainda existiria vida inteligente neste mundo desumano?
ALERTA DE SPOILER: se você pretende assistir ao filme e não quer saber nada sobre a trama até então, melhor encerrar a leitura por aqui. Os parágrafos seguintes contam um pouco do que acontece no longa.
A gênese do medo
O roteiro de Hereditário, escrito pelo diretor Ari Aster, brinca vertiginosamente com o inexplicável, algo que diversas obras do terror o fazem com competência. Se há fantasmas ou demônios — ou mesmo alienígenas —, há também a gênese do medo. Não se sabe do que tais criaturas são capazes, já que não são humanas e, ainda assim, possuem inteligência (de acordo com o que é contado na literatura e no cinema). Há, portanto, um bocado de genialidade na utilização daquilo que não se explica em obras que fogem do gênero. Comédias, como Os Caças-Fantasmas (1984) e romances dramáticos, como o recente e fantástico Sombras da Vida (2017), revelam uma gama gigante de possibilidades para a utilização de artifícios do terror em filmes que corajosamente flertam com o medo.
Hereditário, porém, além de ser um terror genuíno, não se contenta em trazer objetos do medo como elementos. Aster, estreante em longas-metragens, inclui o temor na forma com que conduz o filme. Se, no princípio, o público já é apresentado à morte da avó reclusa, é no mesmo início que se é introduzido na casa daquela família por meio de um inusitado zoom in: Vê-se as miniaturas feitas por Annie (Toni Collette com uma atuação passível de muitos prêmios) e, sem muita demora, a aproximação transforma um cômodo de uma das miniaturas no quarto de Peter (Alex Wolff), logo invadido pelo pai (Gabriel Byrne).
Sem qualquer explicação dentro da realidade para o funcionamento dessa introdução, o filme toma ares obscuros. Outra fonte do medo humano, o ilógico, potencializa a percepção dos fatos e acaba por espirrar no espectador uma perda de sanidade que, fatalmente, rima com outro tipo de morte: a morte daquilo que se é enquanto ainda se está corporalmente presente.
Obviamente, o público não entra em qualquer estado de demência coletiva, mas é o suficiente para sedimentar a desconfiança — mesmo que inconsciente — sobre tudo que continua a partir dali.
A desolação construída por Aster ganha dimensões ainda maiores através da direção de fotografia de Pawel Pogorzelski. As luzes utilizadas por ele apontam o desconhecido (como a vermelha que ilumina a casa na árvore) ao mesmo tempo em que imergem a família em sombras. É essa mesma escuridão que contrapõe o misterioso brilho visto por Charlie (Milly Shapiro em uma estreia impressionante) e Peter e que rima com o desenho de som extraordinário, proposto por uma trilha sonora discreta que atua entre os silêncios.
Dessa maneira, é de extrema precisão a escolha em revelar o rosto tomado por sombras de Peter, após olhar no retrovisor e perceber o que acontecera, contornado sonoramente apenas pelo som do pisca-alerta do carro. Sem qualquer música para ressaltar o acontecimento, nada externo influencia a percepção da cena — apenas o mesmo som que ele (Peter), paralisado, pode escutar.
A cadeia sensorial
Com a maior parte da plateia conquistada, Hereditário inicia um passeio retorcido pela consciência e também pela inconsciência, construindo uma cadeia sensorial que tem o poder de afetar a quem se deixar imergir. Desse modo, surgem motivos para repulsa, enjoar-se, rir, chorar e temer. Ao mesmo tempo que, para quem é adepto às dezenas de jump scares (aqueles sustos causados pelo som repentinamente forte da trilha sonora) do terror mais genérico e não se deixa levar pela atmosfera proposta, as pouco mais de duas horas podem ser difíceis e cansativas.
E é justamente aí que reside mais um mérito de Hereditário: essa dificuldade de assisti-lo não é à toa. Aster demonstra ter controle total sobre a sua história e sobre o poder que ela tem de causar desconforto. Se houver resistência em assisti-lo, haverá uma inevitável fadiga; se houver entrega, as duas horas parecerão curtas demais e a sensação também será de desconforto — mas um desconforto de quem está resistindo e prestes a experimentar um novo sabor favorito de suco. Por outro lado, é óbvio que Hereditário não se resume a um suco, mas é a questão sensorial, de envolver os cinco sentidos, que se reflete nessa metáfora. É um filme que (in)conscientemente se pode ver, escutar, tocar, e sentir cheiro e gosto. Cada um ao seu jeito.
Eis o pavor da dúvida e o maior mistério da vida
Ultrapassando, assim, os limites do audiovisual e percorrendo o inexplicável de uma forma tão natural, ele (o filme) demonstra que, como disse Platão (há quase 2500 anos): “Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz”.
A luz, no caso, é a razão e, quando ela está perdida, nada pode ser feito em busca da verdade. E qual é a verdade?! Hereditário não é um filme de respostas. É um filme de perguntas. E aí está outro poder apavorante, o medo de não ter respostas para tudo; o mesmo medo que faz acreditar no inexplicável... no sensorial.
Vive-se em uma miniatura, com forças maiores a reger tudo? Eis o pavor da dúvida. Eis o maior mistério da vida.