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Crítica Sandman | Um sonho que se torna realidade, mas com alguns tropeços

Por| Editado por Jones Oliveira | 05 de Agosto de 2022 às 09h12

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Adaptações são sempre complicadas. Apesar da tentação de achar que a história está pronta, levar uma obra de um formato para outro é tão (quando não mais) complicado quanto criar algo do zero. Afinal, mais do que decidir o que entra e o que sai, o verdadeiro desafio é adequar a linguagem de um formato para outro.

Com Sandman, essa sempre foi uma preocupação bastante presente. Considerada um dos maiores clássicos das HQs, a obra de Neil Gaiman não é apenas genial pela ótima história, mas pelo modo como usa a linguagem dos quadrinhos para isso. A arte sequencial se encaixa perfeitamente no clima onírico do Sonhar e é essa combinação de roteiro e ilustrações que tornam a jornada de Morpheus algo único na Nona Arte. Assim, como levar tudo isso para uma série de TV?

O desafio da Netflix, por si só, já era bastante desafiador. Adicione à equação o fracasso recente de Cowboy Bebop e outras tentativas da empresa de adaptar obras de quadrinhos e você tem um pesadelo pronto para aterrorizar os fãs. Contudo, apesar de todas as previsões negativas, Sandman chega ao streaming tornando o sonho de uma geração de fãs em realidade — mas a que preço?

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Fidelidade extrema

Seja pelo medo de repetir os erros recentes ou pela simples pressão de lidar com uma obra tão poderosa, amada e emblemática, fica claro ao longo dos dez episódios dessa primeira temporada a preocupação do estúdio em levar a história das HQs para as telas da maneira mais fiel possível. Para os fãs que decoraram cada uma das páginas do quadrinho, isso é perfeito.

Cada episódio é uma tradução quase literal da HQ a ponto de conter cenas e diálogos quase inalterados. A primeira temporada engloba os eventos de Prelúdios e Noturnos e Casa de Bonecas, os dois primeiros álbuns do personagem nos quadrinhos. De maneira geral, é quase como se cada episódio representasse uma edição do gibi, tamanha a sua fidelidade. E é aí que as coisas começam a incomodar.

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Como fã do material original, é ótimo ver Morpheus (Tom Sturridge) ir atrás de suas ferramentas depois de passar um século aprisionado no mundo desperto, desafiar Lúcifer (Gwendoline Christie) ou perseguir o serial killer Coríntio (Boyd Holbrook) assim como no original.

Porém, isso passa longe de ser uma adaptação. Na verdade, o que a Netflix fez foi transpor a história de um formato para o outro, ignorando as particularidades da linguagem dos quadrinhos e também da própria TV — o que faz com, no fim das contas, a série não tenha o mesmo impacto do original em toda a loucura impressa em cada página.

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Mas não me entenda mal: Sandman é incrível e, como leitor, me fez devorar cada um dos episódios, me deixou encantado com a recriação do Sonhar e me fez rever alguns capítulos em específico de tão bons que ficaram. Só que isso tudo é muito mais mérito da escrita de Neil Gaiman do que realmente uma conquista da série.

A grande questão em que Sandman tropeça é se apegar — ou se acorrentar — tanto à fidelidade que não consegue ser o quadrinho e tampouco aproveitar a ideia de uma história serializada. Isso fica claro quando você percebe que essa tentativa de abarcar os dois primeiros álbuns da HQ traz tramas que não conversam entre si e o resultado é uma temporada que não se encaixa.

Para ser uma adaptação de Prelúdios e Noturnos e Casa de Bonecas, a série precisaria pegar a história, os elementos e os temas apresentados nesses arcos e costura-los ao longo de seus dez episódios. Não há nada de errado em repetir situações e falas — a gente adora, na verdade —, mas é preciso que haja uma coesão na narrativa que está sendo apresentada de modo que cada uma dessas peças faça sentido no todo que está sendo montado. E não é isso o que acontece.

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Na prática, a preocupação com a fidelidade faz com que Sandman tenha duas temporadas bem claras divididas desses episódios. E cada uma delas tem seus próprios personagens e arcos narrativos que se encerram nelas mesmo.

Na primeira parte, que engloba Prelúdios e Noturnos, acompanhamos a busca de Morpheus por suas ferramentas ao mesmo tempo em que descobrimos a importância do Sonho para o mundo e também do mundo para o Sonho. Aqui, o foco fica no próprio Morpheus e em John Dee (David Thewlis), um assassino que carrega uma joia capaz de tornar sonhos em realidade e que quer usar isso para extirpar a mentira e a fantasia do mundo.

Já na segunda metade, tudo isso é fato ultrapassado e a história passa a ser sobre a capacidade dos sonhos se transformarem. E pouco — ou quase nada — do que é desenvolvido na primeira parte tem impacto na trama de Rose (Vanesu Samunyai) na busca por seu irmão perdido e na capacidade de ela tem de destruir o mundo dos sonhos.

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Quando você olha individualmente para cada história, encontra uma série que realmente aquilo que todo fã sempre quis ver. Contudo, observar o todo é entender como falta um elemento de coesão conectando essa narrativa. Falta adaptar o quadrinhos para que ele seja uma série de TV.

A saída encontrada pela Netflix foi usar o Coríntio como o personagem que conecta duas tramas, o que é muito mais uma desculpa do que realmente uma solução. Ele é um pesadelo que fugiu do Sonhar — o reino dos sonhos — e que prefere viver entre os humanos como um serial killer.

Só que sua história só é desenvolvida na segunda metade da temporada, quando se discute sobre a possibilidade de os sonhos se transformarem em algo mais. Até então, ele é apenas a figura que aparece para maquinar contra o protagonista sem um peso de verdade nesse primeiro arco. É quase como se fossem personagens diferentes.

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E isso só mostra o quanto Sandman peca na hora adaptar o material original. O medo de irritar os fãs parece ter paralisado os roteiristas que seguiram pelo caminho fácil de apenas transpor cenas inteiras de um formato para o outro, mesmo que a solução para esse problema não fosse nada difícil. Bastariam alguns diálogos ou situações originais para justificar aquilo que o quadrinhos já apresentou.

Os rostos do sonho

Ok, falando assim, parece que Sandman é uma série terrível — o que está bem longe de ser verdade. Na verdade, o trabalho da Netflix de recriar o clássico das HQs é impressionante, principalmente ao dar forma a toda a loucura que Gaiman apresenta nos quadrinhos.

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Brincar com o onírico e usar a arte para criar o absurdo é algo que funciona muito bem nas páginas de um gibi, mas que a série conseguiu transpor muito bem na tela. Visitar o Sonhar é incrível, seja quando o reino ainda está em ruínas ou mesmo quando o todo o seu esplendor foi restaurado.

E esse é apenas um aspecto de como, artisticamente, o seriado é impecável. Ainda que com algumas limitações do formato, essa aura feérica do reino dos sonhos é apenas um dos vários cuidados que a produção teve na hora de reproduzir a fantasia do gibi. Isso passa tanto pelo Inferno quanto por cada um dos sonhos visitados por Morpheus — além, é claro, da caracterização do personagens.

Ainda que Tom Sturridge seja um ator um tanto quanto limitado e que parece estar sempre prestes a chorar, ele consegue incorporar bem a figura de Sandman. O Perpétuo tem esse jeito mais “etéreo” que compensa a falta de expressividade do rapaz. Adicione o fato de que ele está idêntico ao personagem nas HQs e isso faz com que você compre automaticamente que aquele é o Rei dos Sonhos.

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Ao mesmo tempo, temos um elenco de apoio que é muito bom mesmo — daqueles que você lamenta que aparecem tão pouco. Jenna Coleman como Johanna Constantine é tão incrível que faz você querer um spin-off dessa personagem tão logo ela aparece em cena. Da mesma forma, o Lúcifer de Gwendoline Christie traz toda a sutileza e contradições que o demônio dos quadrinhos apresenta, o que torna tudo uma delícia de acompanhar.

Lucienne (Vivienne Acheampong) é outra grata surpresa. Nas HQs, o personagem é apenas o bibliotecário do Sonhar que é quase irrelevante para a história, mas ganha um peso muito grande na série graças à ótima atuação da atriz. Ela oferece um contraponto a Morpheus, entregando ótimos diálogos sempre muito provocativos e perspicazes. E embora o roteiro de Sandman deixe de lado muitas das sutilezas que os quadrinhos apresentam, Acheampong consegue resgatar isso na interpretação.

Contudo, o destaque mesmo fica com John Dee. No gibi, ele é um vilão esquecido da DC que age como um psicopata genérico por aí fazendo maldades com o Rubi dos Sonhos pelo simples fato de ser mau e ter poder. Na série, porém, o ator David Thewlis torna o personagem muito mais interessante e complexo ao retratá-lo como alguém perturbado que tem uma boa motivação por trás de suas ações — embora totalmente questionáveis.

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Não por acaso, o seu confronto com Sandman é muito melhor do que o embate entre o protagonista e Coríntio, que deveria ser o grande clímax da série. Isso acontece tanto pelo ótimo trabalho de Thewlis como pelo já citado problema na hora de adaptar os arcos. Além disso, o vilão com boca nos olhos tropeça também pelo trabalho bem mais ou menos de Boyd Holbrook.

Vale a pena ver Sandman?

Apesar de ser difícil chamar Sandman de uma adaptação e as amarras causadas pelo medo de desagradar os fãs serem um incômodo constante ao longo de toda essa temporada que poderiam ser duas, não há como deixar de dizer que a produção da Netflix é uma das melhores novidades do ano até aqui.

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Por muito tempo, Sandman foi considerado uma adaptação impossível de acontecer. Além de uma promessa de filme que nunca saiu do papel, a HQ tem uma legião de fãs devotos — que quer saber mais do que o próprio autor, diga-se de passagem — e toda uma carga de símbolos e significados em sua história que muitos duvidavam que pudesse ser levada para outra mídia.

Contudo, o que vimos aqui foi um sonho se tornar realidade. A série recria muito bem não só a estética como também os temas e todo o clima onírico, fantástico e ácido que marca a obra de Neil Gaiman. Ainda que se apegue demais ao original e tropece na falta de coragem de ir além e trazer algo original para adaptar a história ao formato proposto, segue sendo um trabalho incrível à altura do cultuado quadrinho.

Para os fãs, é um passeio pelas terras do Sonhar como há anos se esperava ver. Para quem está chegando agora, uma excelente boas-vindas a um universo riquíssimo e com potencial tão infinito quanto a própria imaginação.