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Crítica | O Tigre Branco e o necessário diálogo com o alerta de 1984

Por| 29 de Janeiro de 2021 às 11h30

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O Tigre Branco não é apenas um excelente filme, com uma história incrível e muito bem pensada e articulada. Este é também um filme estiloso, no sentido de que entende o seu conteúdo bastante pesado e repleto de informações, mas mescla isso com recursos que deixam a história mais palatável e atrativa para um leque maior de espectadores, sobretudo aqueles que não são tão acostumados a verem histórias socialmente pesadas como esta em seu cotidiano.

A repercussão de O Tigre Branco já é notável. Não apenas teve uma escalada rápida do Top 50 para o Top 10 da Netflix, como também tem sido chamado de ”o Parasita indiano”, o que é um pensamento que pode realmente ocorrer durante o filme. É importante não usarmos essa comparação, aqui, para dizer qual dos filmes é melhor, mas colocar os dois lado a lado pode ser bastante interessante para avaliarmos os estilos propostos. Enquanto Parasita explora bastante o silêncio, o minimalismo e o suspense, acumulando coisas ruins que irão explodir nos momentos finais do filme, O Tigre Branco tem uma abordagem bastante diferente para falar sobre desigualdade social.

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Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.

O baque

Há diversos filmes indianos na Netflix e muitos deles soam bastante estranhos para os espectadores brasileiros. O Tigre Branco surpreende logo de cara pelo uso de recursos bastante hollywoodianos e que podem fisgar o espectador quase que instantaneamente. O título, com uma estilização que quase indica uma comédia, é introduzido com uma trilha sonora que logo é silenciada para dar lugar à música "Mundian To Bach Ke", de Panjabi MC.

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O que poderia ser apenas mais uma inocente canção inserida para causar um impacto instantâneo no princípio do filme, retrospectivamente torna-se muito mais significativa. O Tigre Branco traz, para o centro dos problemas sociais da Índia e a colonização inglesa sofrida pelo país, o que, com o tempo, acabou englobando também o imperialismo estadunidense. Panjabi MC tem um papel interessante nesse sentido: indiano nascido na Inglaterra, o músico tem como um dos objetivos da sua arte a fusão de dois mundos, o do bhangra e o do hip-hop.

Funcionando quase como uma rima cinematográfica, a direção de Ramin Bahrani também promove uma fusão entre linguagens distintas do cinema (o que é intensificado se soubermos que O Tigre Branco é uma coprodução Índia-EUA), ampliando as possibilidades de identificação dos espectadores. É notável, inclusive, como a fotografia utiliza diferentes tipos de lentes, com diferentes deformações, para nos guiar pelo documental e pela ficção. Assim, O Tigre Branco não apenas reflete sobre a Índia, mas sobre desigualdades que podem ser encontradas em outros países. Não a toa, há um momento em que o personagem-narrador, Balram (Adarsh Gourav), pergunta: “No seu país também é assim?”.

A sequência de abertura ainda traz diversos outros elementos. Enquanto ainda não conhecemos os personagens, é difícil entender o que está acontecendo, mas o personagem de Balram soa claramente deslocado e estranhamente desconectado do traje de marajá, um título de nobreza indiana que hoje tem valor meramente honorífico. A música alta, o carro em uma velocidade questionável, o monumento com Mahatma Gandhi pintado de vermelho pela luz, a vaca no meio da rua e o olhar de Balram, que se recusa a ignorar os moradores de rua, adquirem o status de “sinal do que está por vir” e ajudam a criar a tensão que irá culminar no momento em que a criança é atropelada.

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O ato do atropelamento é interrompido no seu terrível clímax por uma voz que, em tom jocoso, pede desculpas e diz que isso não é jeito de começar uma história. Em menos de dois minutos, você provavelmente já foi fisgado.

Duplipensar

Depois dessa introdução impressionante, o filme adquire por um tempo uma narrativa mais documental. Para quem não conhece a Índia pessoalmente, é possível que uma série de choques comecem a acontecer a partir desse momento. Isso porque a cultura indiana sempre foi vendida como exótica e os documentários mais populares que chegam a nós costumam, de certo modo, romantizar a cultura indiana e se abster de mostrar os seus problemas sociais, um típico (e bastante comum) marketing de turismo.

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O grande problema disso é sermos contaminados por uma imagem do local que é, na verdade, uma enorme maquiagem. Quando Balram começa a falar da própria cultura, todo um novo mundo começa surgir e o espectador, fisgado, agora passará por uma reeducação cultural. O discurso de Balram, no entanto, é bastante multifacetado. A versão com o áudio original é excelente para ouvirmos o inglês com o sotaque carregadíssimo de Balram, mas algumas sutilezas e ironias podem se perder na tradução legendada, o que é recuperado maravilhosamente pela dublagem brasileira, que consegue deixar o filme fluido e com a ironia escrachada para quem não tem familiaridade com a língua inglesa.

O panorama religioso conduz o discurso à ideia de que, lá, “é vantajoso crer e não crer”. Em seguida, Balram elenca uma série de contradições que lembram muito o conceito de “duplipensar” do livro 1984, de George Orwell, um autor nascido na “Índia Britânica”. Outra referência bastante conveniente para o que está sendo mostrado.

Essa perspectiva é o que introduz o pensamento sócio-econômico de Balram, que começa a falar sobre o posicionamento da China e da Índia como próximas potências mundiais, trazendo uma informação que começa a ser recorrente nos filmes a partir de 2020, ou seja, o descendimento dos EUA (e vale lembrar que outro recente filme da Netflix, a ação Zona de Combate, também trouxe esse assunto à tona).

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A partir desse momento, Balram começa a escrever um e-mail para o premiê chinês e o que acontece é uma extraordinária mudança na narração, tão sutil que pode passar despercebida.

"Quem conta um conto…

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… aumenta um ponto", diz o nosso ditado popular. Com isso não quero dizer que Balram está mentindo, o que não é o caso, até mesmo porque o filme é uma ficção e não um documentário (ainda que exerça funções documentais em determinados momentos). Digo isso porque é necessário não tomar tudo o que Balram diz como uma verdade do próprio personagem.

O Tigre Branco começa sem narração alguma e é no momento que antecede o atropelamento que ouvimos Balram falar conosco, espectadores, dizendo que não é assim que se começa uma história. Quando o premiê chinês entra na trama, Balram começa a escrever um e-mail em que narra sua trajetória. A partir desse momento, a narração de Balram se torna, ao mesmo tempo, duas coisas, assim como o duplipensar: uma narração irônica que expõe os problemas da Índia e que é direcionada a quem estiver assistindo ao filme, e uma narração que faz parte do e-mail. Essa segunda forma de contar a história (que se intercala e, às vezes, até se confunde com a outra) adquire ares de uma linguagem de coach, bastante conveniente para o tema empreendedorismo, sobre o qual Balram conversa com o premiê.

“Já fui um serviçal”, diz Balram enquanto o vemos como uma pessoa (supostamente) muito bem-sucedida. Assim, o personagem adere à linguagem sedutora dos coachs, sempre muito interessados em demonstrar como superaram as adversidades da sua vida para serem as pessoas de sucesso que supostamente são hoje. Balram, no e-mail, acaba nos dando a dica do que é O Tigre Branco enquanto filme: “[..] ofereço, sem custos, a verdade sobre a Índia contando a história da minha vida”.

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A história não será contada, no entando, sem outra grande isca: “devido a um ato de empreendedorismo”, Balram é um procurado da polícia. Em cinco minutos de filme, fomos completamente fisgados duas vezes.

A história

Balram começa a contar sua história a partir da sua infância, o que nos ajuda a entender o quão profunda é a mensagem de O Tigre Branco. O que se desenvolve a partir daí, sem abandonar o duplipensar, a ironia e a sagacidade, é um enorme drama épico. Não é segredo que os grandes dramas, apesar de ainda serem os favoritos das mais importantes premiações, não são exatamente filmes muito populares. O Tigre Branco, no entando, por ter conseguido nos fisgar de forma tão impressionante nos primeiros minutos, consegue fazer com que o público esteja muito mais disposto a acompanhar com atenção a história de Balram.

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Daí em diante, O Tigre Branco conta também com a nossa empatia para entender como o “empreendedorismo” indiano transforma trabalhadores em servos, ou seja, pessoas que vivem em situação análoga à escravidão. Balram oscila o tempo todo, ora mostrando-se como um enxadrista social, ora assumindo o justo papel de vítima. Mesmo sua vida é contruída segundo um duplipensar, ainda que isso não seja um desejo natural do personagem.

Rajkummar Rao e Priyanka Chopra estão excelentes como Ashok e Pinky, um casal profundamente influenciado pelo pensamento estadunidense e que, diante de Balram, também exerce o duplipensar, a contradição, de acordo com a conveniência: se está tudo bem e não há ninguém por perto, Balram é um amigo, se não, ele volta a ser tratado como servo. Assim, ele é servo e não-servo ao mesmo tempo.

O Parasita indiano?

A pobreza extrema, os problemas sociais, a vida como servo e o constante jogo de estratégias com vistas a ter uma fatia do bolo desfrutado pelas classes mais ricas fazem O Tigre Branco se assemelhar ao sul-coreano Parasita, que foi um dos grandes destaques de 2019. A treta de O Tigre Branco, no entanto, não é apenas uma questão de classes, mas sim a exposição de um problema político global, que envolve interesses comerciais e políticos de diversas nações com poder suficiente para influenciar todos os demais. O vespeiro é muito maior.

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Acredito que podemos deixar Parasita um pouco de lado, já que o próprio filme não faz referência explícita ao colega coreano — e este não é um filme que tem a intensão de deixar muitas coisas nas entrelinhas: há, inclusive, um momento em que Balram fala de um concurso para resolver seus problemas, fazendo uma clara alusão a Quem Quer Ser um Milionário?, de Danny Boyle, um cineasta inglês (ou seja, uma visão do "colonizador" sobre o colonizado).

1984, ainda que ambientado numa distópica Londres, é uma grande metáfora sobre o poder e Orwell tinha o intuito de alertar sua geração e as futuras acerca dos regimes totalitários, sobretudo os que começavam a surgir na Europa e na Ásia. O duplipensar que é exposto por Balram nas contradições tidas como uma qualidade do empreendedor indiano ganha corpo na narração: ora Balram parece ser a vítima, ora ele parece estar se tornando o opressor. Mas é o tom da sua narrativa que irá nos dizer quando ele está sendo sincero e quando está sendo sarcástico. Assim, ele faz uma nada óbvia anatomia do duplipensar e o revela como estratégia de opressão.

Tendo isso em mente e entendendo 1984 como uma referência muito mais pertinente para o filme, O Tigre Branco pode deixar de ser o Parasita indiano para se tornar a versão atualizada de 1984 (tenha isso sido intencional ou não). Enquanto George Orwell estava preocupado em criar um alerta, dando um fim pessimista para o seu livro, o filme de Ramin Bahrani (baseado no livro homônimo de Aravind Adiga) dá uma guinada belíssima em seu final.

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Todas as estratégias, os discursos enviesados (que podem atrair os empreendedores desavisados) e o drama da vida de um servo indiano pareciam nos conduzir para mais uma história de superação, em que o menino pobre finalmente consegue seu lugar ao sol. Mas não. O Tigre Branco nos oferece uma alternativa, um empreendedorismo humanitário, que vê pessoas não como peões em um tabuleiro, mas como o que elas realmente são, pessoas cujos direitos básicos são extamente isso, direitos.

Ao final, Balram caminha pelo seu estabelecimento enquanto finaliza seu discurso, mostrando que é possível ter um negócio em que as pessoas não sejam exploradas ao ponto de perderem a humanidade. Tudo termina em uma imagem com um tremendo potencial icônico: Balram sai do quadro e somos diretamente encarados pelo grupo de motoristas (trabalhadores, não servos) que quebram a quarta parede.

O Tigre Branco está disponível no catálogo da Netflix.

*Agradeço a Clayton Marinho pela excepcional conversa despretensiosa sobre 1984 e por me ajudar a entender o conceito de "duplipensar", tão essencial a esse texto.

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech.