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Crítica | Parasita mostra a sociedade em canibalismo

Por| 10 de Fevereiro de 2020 às 08h36

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Pandora Filmes
Pandora Filmes

Eu acredito que a crítica, por mais que possa partir de um conhecimento prévio da linguagem a ser comentada, é pessoal. Tudo o que será absorvido durante a sessão de um filme (no caso) depende de uma troca entre as intenções da obra e o mundo do espectador. Por isso, pode ser muito válido perceber como Parasita pode ter mais de uma leitura – a depender da classe social e das experiências individuais.

Cuidado! A crítica pode conter spoilers!

Devorando tudo como fogo

Partindo disso, tentar prolongar a experiência do espectador desse filme pode ser muito mais complexo do que aparenta. Eu, que nasci e cresci na periferia, acabei por me identificar com as situações da família Kim até me sentir mal por isso. Eu ri de nervoso, paralisei de raiva, fechei os olhos em um sentimento quase nostálgico... fiquei com a sensação de quase-irmão por entender o brilho nos olhos de Ki-woo (Woo-sik Choi) ao se permitir pensar em ir à universidade. Quando comecei a me sentir mal, na prática, já era tarde. Parasita já havia construído uma ligação muito forte em mim e eu não poderia parar de assistir.

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Essa ligação se deve a dois fatores fundamentais:

  • O roteiro de Bong Joon Ho (de Okja) e do estreante na função Jin Won Han coordena uma série quase imparável de acontecimentos. A impressão é a de que o texto, após a introdução da família reunida em sua casa-porão, não deixou espaço para respiração. Tudo está encadeado de uma maneira crescente, viva, como se cada minuto estivesse sendo devorado; como se o passado fosse uma onda de fogo e houvesse a necessidade de correr enquanto as chamas aceleram atrás.
  • A direção (do próprio Bong Joon Ho) é tão absoluta que, ao coordenar o bom desmantelo promovido pelo roteiro, cede uma força empática absurda aos quatro integrantes daquela família. É na união desses personagens – que sofrem até com um bêbado urinando quase para dentro da casa-porão – que o diretor deixa o seu recado mais fulminante: são gente como qualquer um de nós, pessoas que estão dobrando caixas para pizzas que serão compradas por quem pode pagar; que aceitam o veneno para insetos como se eles mesmos fossem insetos – como se quisessem exterminá-los –; que movimentam toda a base da sociedade para, no final das contas, o topo achar ser válida (diretamente ou indiretamente) a perversa limpeza social.

É interessante, nesse sentido, como cada peça no tabuleiro dos mais abastados é revelada como sem importância – por mais que sejam passíveis de confiança – e como o descarte acaba por ter consequências imediatas. Por outro lado, essas consequências não dizem respeito, por exemplo, ao quão desestabilizada fica Yeon-kyo (Yeo-jeong Jo) quando perde sua governanta (Moon-gwang, interpretada por Jeong-eun Lee) – inclusive, Bong Joon Ho mesmo despreza a afetação da socialite e trata essa sequência com sarcasmo. O que está em jogo, de fato, é a falta de valorização do ser humano que tais pessoas demonstram e como o sentimento de ser, no final das contas, descartável, é dolorido. A própria Moon-gwang é mostrada indo embora da casa com um pesar quase palpável e completamente distanciado da ironia que sua ausência causou.

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Esse sentimento de descarte, tratado desde o início como base do filme, ganha ares ainda mais claros quando, em uma virada de ato absurda (no melhor sentido), descobre-se todo um outro mundo fermentando dentro da mansão. Nesse ponto, Parasita traz o reforço de que tudo está muito mais perto do que se pensa e vai além ao ceder uma camada temporal aos acontecimentos: tudo acontece dessa maneira há muito tempo e somente o passado, que vem devorando tudo como fogo, é capaz de ensinar ao presente e modificar o futuro.

A (in)consciência egoísta

É dolorosamente engraçado como o pequeno Da-song (Hyun-jun Jung), com a inocência da criança que é, diz sentir o mesmo cheiro nos quatro membros da família Kim. Como se não bastasse a dureza dessa percepção – que dói mais justamente por partir de um ser inocente –, tudo é dobrado quando a escolha entre um menino desmaiado e uma moça esfaqueada no peito se revela fácil para Dong-ik (Sun-kyun Lee). Sim... ele, como pai do pequeno e a partir dessa ligação afetiva, agiu com a (in)consciência egoísta.

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O problema é justamente esse: acabamos nos importando tanto com os nossos – com a construção de famílias perfeitas ou de relações utópicas – que não conseguimos perceber a dor de quem se senta ao nosso lado (ou à nossa frente, conduzindo-nos – o papel de motorista de Kang-ho Song é mais do que sugestivo). Deixamos, dessa forma, de erguer um mundo melhor para todos e tentamos edificar um mundo particular. Esse que é privado – precisa-se saber – é levantado, muitas vezes, nas costas daqueles que desprezamos.

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A verdade é que, no fim, enquanto esse ciclo vicioso de nossa sociedade não encontrar um meio digno sustentável para todos, tudo será devorado. Talvez a nossa faminta coletividade seminula não alcance os andares mais altos, mas, sendo pendular, estará sempre se alimentando da base em um vai-e-vem constante. E é somente se essa base ruir que a compreensão de quem são os verdadeiros parasitas ficará clara.

A chuva

E é agora que eu volto a rir de nervoso, porque o fim de uma crítica é o início de um novo processo. Nesse meio-tempo, Parasita continuará ressoando na minha memória, porque a chuva, para mim e para os meus, pode ter um significado tão diferente daquele que tem para outras pessoas quanto o gatilho para uma sensação de nostalgia. Nesse caso, lembro de quando, ainda pequeno, consegui segurar um braço de minha irmã e puxar ela para a calçada, evitando que o bueiro aberto de uma rua alagada a levasse embora. A ideia é permanecer correndo... porque o fogo já está encostando no meu calcanhar.

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*Crítica dedicada a Paula Pardillos