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Crítica | Kadaver é a cadeia alimentar da sociedade

Por| 28 de Outubro de 2020 às 19h15

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É interessante como uma arte pode ser interpretada ao se pensar na realidade do seu tempo. Kadaver (disponível na Netflix) para além de ser um exemplar de terror pós-apocalíptico, pode ter muito a dizer sobre a nossa relação com as adversidades nesse sentido. O filme norueguês parece mais um comentário curto (tem menos de uma hora e meia de duração) e direto sobre como a sociedade atual é canibal.

A história, que acompanha uma família resistente à fome e ao frio após um desastre nuclear, tem uma discussão implícita sobre classes que pode jogar luz no funcionamento da máquina social, do sistema. É, talvez, uma metáfora clara que ergue a pirâmide alimentar dentro do nosso próprio ecossistema sócio-político. Aliás, é, ao mesmo tempo, um símbolo e uma denúncia sobre o quanto estamos à mercê dos mais poderosos.

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Atenção! Esta crítica contém spoilers sobre o filme!

O que está acontecendo?

Por mais que Kadaver tenha tanto a dizer nas entrelinhas, existe uma força estética no filme que, para funcionar, não precisa dessas relações. As escolhas da direção de Jarand Herdal (que dirigiu o curta-metragem Harry Potter and Grindelwald's Demise — de 2012) são muito bem definidas. Trabalhando com a tonalidade de azul e amarelo (ou laranja) incessantemente, o diretor cria uma alegoria fundamental para o embate entre a família protagonista e Mathias (Thorbjørn Harr).

Mas isso não é feito de maneira tão simples ou didática. Essa exposição da fotografia de Jallo Faber (de Mergulho Profundo) é tão dúbia que dá espaço para que o próprio espectador aceite os acontecimentos iniciais. Por essa perspectiva, enquanto tudo o que está demolido pela catástrofe é visto iluminado por um azul firme, o hotel onde acontece todo o desenvolvimento central separa-se do ambiente por meio de suas luzes amareladas.

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Esse investimento no visual dá a Kadaver uma ligação com filmes de orçamento muito maior. Não que sua estrutura seja de um blockbuster, mas, ao estabelecer uma relação imagética entre o azul e o amarelo (ou laranja, como dito), o filme flerta com a coloração teal and orange, tão comum no cinemão de Hollywood.

Nada, por sinal, é gratuito. Herdal parece querer passar um recado sobre poderio mesmo e, portanto, nada melhor do que esteticamente se aproximar do cinema mais financeiramente poderoso do planeta. Simultaneamente, o público é colocado na posição da família, que é encabeçada por Leonora (Gitte Witt). Se o trio inicia a trajetória dentro do hotel acreditando estar assistindo a uma peça teatral, logo tudo começa a se misturar e eles — assim como nós — passam a não saber exatamente o que está acontecendo.

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De onde vem a nossa força?

Colocar-nos dentro do jogo de Kadaver é uma investida inteligente de Herdal, visto que é, justamente, a definição de empatia. Não importa, então, de qual classe social sejamos, estaremos perdidos quase que exatamente como Leonora; estaremos expostos a tudo, buscando compreender o que tem ocorrido, assim como aquela mulher: faminta, pobre, perdida e que procura desesperadamente pela filha.

No entanto, Mathias — o símbolo do homem poderoso — sabe muito bem que conquistar a primeira idade pode deixar tudo mais fácil para ele. O lobo na pele de cordeiro cativa, assim, a pequena Alice (Tuva Olivia Remman), que funciona como uma alusão à doutrinação da infância. Ela, no final das contas (inclusive carregando um coelhinho de pelúcia), acaba sendo o reflexo da ingenuidade de sua idade e é exposta àquele universo novo como a Alice de Lewis Carroll é apresentada ao País das Maravilhas: guiada pelo desconhecido e sem a necessidade de dúvidas expressivas.

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Acontece que o hotel, enfim, é um personagem. Ele é o mundo que devora (aqui literalmente). Quem trabalha para o topo da cadeia alimentar nem mesmo sabe o que acontece por baixo dos panos — ou, no caso, pelos túneis abaixo do piso. Leonora, então, é a revolução, que surge a partir do amor que é, provavelmente o mais forte: o de mãe. A busca por Alice não é gratuita; é o roteiro do próprio Herdal, de repente, revelando o quanto cada um de nós, subjugados e feitos de plateia do espetáculo dos poderosos, podemos encontrar força através do amor.

Kadaver é um filme que transforma a realidade em fantasia e esta fantasia em realidade. Utilizando-se do cinema e, internamente, do teatro, Herdal deixa que as máscaras (ou as carapuças) caibam em quem assim se sentir. Enquanto isso, pode ficar bem transparente que basta tirarmos o que nos define como plateia para que possamos ser protagonistas de nossas próprias vidas. Por mais que agir dessa forma venha a ser um terror, talvez seja o jeito de, aos poucos, mostrarmos ao topo da pirâmide que não somos tão manipuláveis quanto pensam.

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*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech.