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Crítica O Soldado que Não Existiu | A anatomia da mentira

Por| Editado por Jones Oliveira | 11 de Maio de 2022 às 21h30

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Uma mentira bem contada tem que ser convincente — de modo que não apenas a história em si precisa ser verossímil, mas todo o seu entorno também. Uma boa mentira é aquela em que a ficção é tão ou ainda mais interessante que a ficção. São esses detalhes aparentemente irrelevantes que fazem com que o falso ganhe seu verniz de realidade.

E O Soldado que Não Existiu mostra justamente como verdade e mentira caminham juntos a ponto de se confundirem. Para isso, o novo longa da Netflix se apoia em um dos capítulos mais icônicos e peculiares da história da Segunda Guerra Mundial para mostrar não apenas como uma farsa pode salvar vidas, mas como elas também dizem muito sobre quem a está contando.

O filme estrelado por Colin Firth (O Discurso do Rei) e dirigido por John Madden (O Excêntrico Hotel Marigold) retrata a Operação Carne Moída, uma ação de contraespionagem orquestrada pelo Reino Unido para dissuadir as tropas nazistas sobre um ataque na Sicília, convencendo as forças de Hitler de que o desembarque aconteceria na Grécia. Para isso, eles plantaram informações falsas em um cadáver jogado ao mar em um plano tão absurdo quanto improvável.

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E é em torno dessa ideia que beira à loucura que O Soldado que Não Existiu gira, trazendo duas perspectivas bem distintas. Nas palavras de seu próprio narrador, o oficial e futuro escritor Ian Fleming — sim, o pai de James Bond foi um dos responsáveis pela operação e é parte fundamental do longa —, é a guerra invisível da espionagem e de construir mentiras tão convincentes quanto à própria realidade contra a guerra real, de ações e consequências com vida em jogo.

No meio dessa balança, temos um longa bastante competente e com uma história muito interessante, mas que se perde dentro daquilo que ele próprio quer ser.

Construindo a farsa

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Essa diferenciação entre as duas guerras retratadas por O Soldado que Não Existiu não é algo que fica apenas no discurso, mas que se manifesta no próprio filme de forma até pouco sutil. Enquanto a primeira metade é inteiramente dedicada à construção desse falso oficial e de toda a vida que ele nunca teve, a segunda parte é uma típica história de espionagem de guerra.

E a transição de uma parte para a outra é tão brusca que a sensação é que são filmes diferentes colados em uma mesma película. Ainda que isso não seja necessariamente algo ruim, é algo que não só causa estranhamento no ritmo geral da trama como ainda causa um certo incômodo pelos dois tons em si não conversarem entre si.

Isso porque a primeira parte é muito mais intimista e focada em seus personagens do que no conflito ou mesmo nas minúcias do plano em si. Tanto que, em apenas 10 minutos de trama, a Operação Carne Moída já é estabelecida e não há muitas firulas sobre como cada um dos integrantes foi parar naquela missão quase suicida.

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Esse início mais acelerado serve para deixar claro que o foco de O Soldado que Não Existiu não é exatamente a operação em si, mas as relações surgidas em torno desse falso oficial. É a partir do momento em que os agentes decidem pegar o corpo de um indigente e transformá-lo no fictício major William Martin que vemos o roteiro se desenrolar e seus personagens serem desenvolvidos.

Por um lado, essa abordagem pode frustrar quem esperava uma história de guerra ou mesmo de espionagem mais tradicional. Ainda que vários elementos desses gêneros estejam presentes, eles não são o foco dessa parcela inicial do longa.

E, nesse ponto, o título nacional é muito mais claro sobre as intenções do roteiro do que o original. O nome O Soldado que Não Existiu deixa bem mais claro que o foco é a construção desse indivíduo do que Operation Mincemeat, que dá realmente entender que a ideia é se aprofundar nas minúcias da operação, o que nem sempre é bem feito por aqui.

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De qualquer forma, é a partir dessa anatomia da mentira em torno de William Martin que conhecemos os responsáveis pela farsa. Do oficial Ewen Montagu (Firth) e seu rígido senso de dever aos devaneios sonhadores de Jean (Kelly Macdonald), o roteiro costura muito bem a ficção que eles precisam criar com a realidade que esses personagens teimam em não apresentar ao público e nem aos seus colegas.

Em um ambiente repleto de protoespiões e de diretrizes de sigilo, ninguém tem espaço ou mesmo liberdade para dividir sobre seus dramas e aflições e cabe à narrativa que eles criam para seu personagem mostrar ao público o que cada um deles pensa e sente. É a partir da falsa vida de William que descobrimos o quanto Ewen vive um casamento infeliz e é em sua falsa noiva Pam que Jean projeta seus sonhos de final feliz interrompidos pela guerra.

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Esse é um artifício que não chega a ser original, mas que é muito interessante e que funciona muito bem. A partir do momento que você entende o quanto William e Pam falam sobre todos os agentes ligados à Operação Carne Moída, o filme se torna muito mais interessante e envolvente.

O grande ponto, porém, é que essa é uma estrutura que chama a atenção muito mais pela forma do que pelo conteúdo. Não há como negar que essa mistura de real e ficção chama a atenção e te faz querer saber mais sobre esses personagens, mas rapidamente fica evidente o quanto a mentira é mais interessante que a verdade. Isso porque o drama dos agentes não funciona da forma que deveria.

O Soldado que Não Existiu tenta emplacar um triângulo amoroso que não engata em momento algum. O interesse de Charles Cholmondeley (Matthew Macfadyen) em Jean é evidente, mas não fica claro em momento algum que ela se apaixonou por Montagu e muito menos que o sentimento do oficial é recíproco. Tanto que, na hora que tudo é posto à mesa, soa tão surpreendente quanto forçado.

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O roteiro até tenta dar sinais disso ao fazer paralelos entre Montagu e Jean à medida que eles projetam seus sentimentos e desejos em William e Pam, mas é algo tão à margem da história que está sendo contada que não encaixa.

Essa falta de química na construção do triângulo é tão real que o amor não correspondido de Cholmondeley soa mais como um alívio cômico do que como elemento de tensão. Por isso mesmo, todas as tentativas de expor seu ciúme ficam ridículas, pois é algo que não leva a história para lugar algum — da mesma forma como nada dessa relação rende algo.

Espiões em ação

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A impressão que fica é que o diretor percebeu o quanto todo esse drama novelesco não leva as coisas a lugar algum que a segunda metade de O Soldado que Não Existiu parece ser um filme completamente diferente. A partir do momento que o corpo do falso major é jogado na água, esse drama de época dá lugar a uma tradicional história de espionagem cheia de planos mirabolantes e reviravoltas, sobrando pouco espaço para aprofundar e resolver as tensões criadas até então.

Por um lado, isso é muito bom. Ao deixar de lado os romances não correspondidos, o filme volta suas atenções para a guerra real e para as incertezas do plano, que tem tudo para dar errado. E ainda que a gente saiba que tudo vai dar certo — não existe spoiler nos livros de História —, a forma como os fatos são apresentados faz com que você duvide até o último instante do sucesso desse plano maluco, ainda mais quando mil pequenos fatores precisam estar alinhados.

E mesmo que a participação de Fleming dentro do contexto geral seja bem pontual, o modo como o ator Johnny Flynn é usado para narrar e trazer um tom mais dramático à espera pela ação é algo que funciona muito bem. Não só por sabermos quem é o autor e como parte de toda aquela operação vai servir para criar o espião mais famoso do cinema, mas porque a sua narração serve para trazer um verniz de ficção para tornar a realidade mais interessante.

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O único grande problema dessa segunda metade é mesmo a mudança radical de tom. É um cavalo de pau narrativo tão grande que é impossível não estranhar a virada. E isso deixa mais claro o quanto o triângulo amoroso da primeira parte do filme não funciona. É aqui que essa trama deveria alcançar seu clímax, mas é algo tão pouco interessante que ver a perícia de um cadáver em uma cidadezinha da Espanha se torna mais atraente do que saber quem gostava de quem no fim das contas.

Nem tudo é uma história de amor

A grande mentira que Hollywood sempre nos contou é que tudo é sempre uma grande história de amor. Sempre há um mocinho e uma mocinha prontos para se conhecerem e se amarem, independente da situação em que estão inseridos. E por mais que essa seja uma farsa que já compramos e aceitamos, O Soldado que Não Existiu prova que nem sempre esse verniz funciona.

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Ainda que Kelly Macdonald seja a melhor coisa do filme com uma Jean sensível e muito carismático, todo esse arco envolvendo paixões não correspondidas e sentimentos proibidos é algo que não é mais interessante do que a mentira que eles mesmos criaram para seu cadáver e tampouco se encaixa para a trama de guerra e espionagem que vem em seguida.

É algo que fica à deriva no mar do clichê hollywoodiano e que se prova inteiramente desnecessário. A história real por si só já é impressionante o suficiente para virar filme — um dos raros casos em que a realidade é mais interessante do que a ficção pode ousar ser.

O Soldado que Não Existiu está disponível no catálogo da Netflix.