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Crítica | O Poderoso Chefão e a construção do conceito de família

Por| 15 de Junho de 2020 às 08h49

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Paramount Pictures
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Eu sou professor há quase 20 anos e escrevo sobre cinema desde 2008. Já escrevi sobre clássicos com quase um século de existência e sobre filmes contemporâneos; sobre filmes que me fizeram chorar, quase morrer de rir, ter raiva, querer esquecer; sobre produções brasileiras e latinas em geral, americanas, africanas, europeias e asiáticas. Devo ter escrito sobre uma ou outra da Oceania e, se vale a locação, passei pelos polos norte e sul também. Foram muitas obras-primas e tantas outras totalmente esquecíveis.

Por outro lado, talvez eu sempre tenha evitado escrever sobre aqueles filmes mais pessoais, algo que precisei fazer uma única vez nos meus 12 anos de crítica de cinema, quando escrevi sobre Noite de Estreia (de John Cassavetes, 1977). Mas se o filme de Cassavetes é pessoal para mim em um nível muito íntimo, dois filmes têm um peso que vai além, que reconstrói, em minha memória, toda a relação que tive com minha família em um tempo que eu, ainda muito pequeno (lá no início da década de 1990), via minha mãe somente durante os finais de semana. Ben-Hur (de Willian Wyler, 1959) e, justamente, O Poderoso Chefão (de Francis Ford Coppola, 1972) são esses filmes.

Existem muitos trabalhos escritos sobre o filme de Coppola, acadêmicos ou não. Somente no Internet Movie Database (o IMDb), existem 249 críticas oficiais (por enquanto) e quase quatro mil reviews de usuários. Talvez, então, a melhor forma de ser relevante em meio a tudo seja abordar o filme de maneira pessoal e por um viés com algum caráter de novidade. De repente, minha pessoalidade pode causar alguma identificação e, assim, a experiência de assistir chegue a encontrar algumas reflexões. Não é arrogância, prepotência ou algo nesse sentido de minha parte. Pelo contrário: é a constatação do que eu penso sobre a crítica de cinema, sobre o quanto ela é, de fato, pessoal e é somente essa proximidade que tira ela do status de taxativa e objetiva e a coloca como o pensamento subjetivo de um espectador. Porque é isso que nós, críticos, somos: espectadores-que-escrevem.

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Atenção! Esta crítica contém spoilers sobre o filme!

Os arquétipos

O Poderoso Chefão é um filme sobre família no final das contas, sobre a dissolução de uma família causada tanto por agentes externos quanto internos. Toda a base familiar, escrita por Mario Puzo no best seller originário e reforçada pelo roteiro do próprio Puzo e de Coppola, ganha uma vida própria, como se o significado de família fosse um ser, um ente. Por essa perspectiva, esse ser tem tanto a consciência quanto a inconsciência e, a partir desta, cada membro do corpo familiar pode ser visto como um arquétipo – nomeação dada pelo psiquiatra Carl Jung para, em resumo, padrões emocionais e comportamentais humanos. Essa abordagem permite que Coppola desenvolva o filme em duas camadas simultâneas, sendo ambas complexas.

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A primeira é a dos personagens em si: Don Vito Corleone (Marlon Brando) é uma espécie de provedor, de fonte de vida para os seus e, ao mesmo tempo, detém um poder de destruição – algo que é apresentado durante os primeiros minutos do filme. Nestes minutos, inclusive, Bonasera (Salvatore Corsitto) expõe justamente uma questão familiar, sobre sua filha violentada. A personagem de Brando assume a postura do arquétipo Grande Mãe, que está relacionado a comportamentos e representações feitas da figura materna ao longo do tempo.

Enquanto os valores da Grande Mãe podem ser tanto positivos quanto negativos, o então Don é igualmente multifacetado, podendo ser admirado por sua honra e apreço pela família e reprovado pelas ofertas irrecusáveis e por ser um perpetuador do machismo estrutural dentro de sua cultura: "Foi assim que virou um finocchio de Hollywood, chorando como uma mulher?", diz o Padrinho a Johnny Fontane (Al Martino) em um dos casos.

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Sonny (James Caan), por sua vez, é a personificação da Sombra, o arquétipo que consiste em características que se tenta esconder de outras pessoas. Mas Sonny não tem como esconder o que quer que seja. Porque ele é aquilo que se tenta esconder. Enquanto isso, a relação entre arquétipos mais intensa se dá entre o Herói e o Trapaceiro, Michael (Al Pacino) e Fredo (John Cazale), respectivamente. Para Jung, o arquétipo do Herói é aquele que é subjugado, como, por exemplo, quando Michael diz que pode matar o Capitão McCluskey (Sterling Hayden) e Sollozo (Al Lettieri) e os irmãos riem; é também aquele que vence os próprios objetivos, como na violenta resolução da cena no restaurante.

O problema é que Michael, com a ausência de Sonny, parece, pouco a pouco, deixar a sombra lhe dominar e o Trapaceiro (ou Malandro) é, fundamentalmente, quem cria paradoxos para o Herói. Nesse caso, o Herói pouco pode fazer para além de repreender o Trapaceiro, como o faz Michael pós-reunião com Moe Greene (Alex Rocco). Mas essa repreensão é algo que pode não se repetir quando se alcança um paradoxo de fato e o Herói está, enfim, dominado pela Sombra – e O Poderoso Chefão II (de Coppola, 1974) é duro na resolução dessa relação.

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Michael, inclusive, é citado como herói de guerra e, quando recebe poderes de domínio, resolve deixar de fora quem era o Herói até então, o homem que buscava reprimir a Sombra a fim de alcançar o bem da sociedade (da família): Tom Hagen (Robert Duvall). Não existem dois Heróis em um ser. Esse ser, sendo a família, parece não estar mais compatível com o Herói de Hagen, que, de fato, é mostrado reprimindo sua Sombra em diversos momentos. Em um deles, inclusive, com Jack Woltz (John Marley) gritando em seu rosto e expulsando-o de sua casa.

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A complexidade de Don Vito Corleone parece o conceder proatividade sobre o todo. Em uma cena de reunião com Solozzo, seu controle sobre a Sombra torna-se explícito, com o chefe dos Corleone repreendendo Sonny e dizendo: “Nunca diga a alguém que não seja da família o que está pensando”. A família, como ser que é em O Poderoso Chefão, recebe ligação com a Persona, sendo este o arquétipo da imagem que passamos de nós mesmos para as outras pessoas. A Persona não revela toda a nossa personalidade, isso porque ela parece ser aliada das normas da sociedade – o que é bem defendido no terço final do filme, quando, em reunião com os demais chefes de família, Don Vito diz: "Estou disposto a fazer o que for para achar uma solução pacífica".

Toda essa estrutura é, somente, a base do filme. Cada frase dos diálogos, cada ação dos personagens e cada acontecimento direcionam essa estrutura por caminhos novos. Se esses direcionamentos pareciam sólidos enquanto a Grande Mãe regia a personalidade da família e fazia esta de essência da Persona, tudo começa a ruir quando o ser-família começa a perder seus arquétipos e a Persona falha em não revelar sua personalidade. Michael, então, Herói dominado pela Sombra, assume como Don, como uma Grande Mãe desvirtuada ou predisposta ao caos.

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Minha família

Durante os dois anos em que minha mãe precisou trabalhar em outro estado – e, por isso, eu a via somente nos finais de semana –, ela viajava por cinco horas nas madrugadas de sábado para passar o tempo que podia comigo, com minha irmã (quatro anos mais nova do que eu) e com meu pai (quem cuidava da casa). Eu sempre vi esse sacrifício de minha mãe como a prova maior de sua força e de seu amor pela família. Talvez por isso meus finais de semana eram imersos em tudo que ela podia ou queria proporcionar. Na maioria das vezes, ela só queria descansar com a gente mesmo; sentar e assistir a um filme; conversar…

Nossos encontros, assim, eram regados a filmes. Se durante a semana eu assistia aos filmes de ação dos anos 1980 com meu pai, nos finais de semana minha mãe me apresentava a filmes como Ben-Hur e O Poderoso Chefão – lembro de outros clássicos, mas esses dois, com certeza, foram os que mais repetimos. Mas ela não somente assistia aos filmes comigo, ela pausava para me questionar sobre o que estava acontecendo ou para conversar comigo sobre as cenas mais pesadas (visto que eu era uma criança), como as mortes de Luca Brasi (Lenny Montana) e Sonny.

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Esses questionamentos iam muito além quando o filme parecia mais propenso para reflexões sobre a vida. O filme de Coppola foi um desses por meio do qual minha mãe conversou comigo sobre família, respeito, o certo e o errado, controle emocional e amor. Eu, que cresci na periferia, tenho a sorte de ter tido uma mãe mais presente do que muitos que estavam ao meu redor – por mais que a presença física, durante dois longos anos, fosse somente nos finais de semana (porque, nas madrugadas de toda segunda-feira, minha mãe viajava mais cinco horas de volta ao trabalho). Sou privilegiado por ter tido família, por ter crescido em uma estrutura familiar que me faz, todos os dias, acalmar a minha Sombra e não deixar que ela reja as minhas atitudes.

Como crítico, eu poderia ir muito além. Há muito o que explorar no efeito causado pela decupagem de Coppola, pelos planos utilizados, pela direção de arte que faz cada figurino ser um conceito simbólico a léguas da estética pela estética, pelas atuações, pela composição autoplagiada de Nino Rota... Há, em O Poderoso Chefão, uma aura de perfeição quem nem mesmo as cenas de ação ainda em desenvolvimento na década de 1970 – definidas ou redefinidas pela ascensão da franquia 007 e potencializadas nos anos 1980 –, claramente dubladas, podem esconder.

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De todo modo, eu prefiro, pelo menos para esse filme, que a minha breve exposição – junguiana – tenha algum caráter de novidade. Há muito o que se ler sobre esse filme (de livros aos quase quatro mil reviews de usuários do IMDb). Além disso, estou aqui como um devedor – um Bonasera – aguardando com todo carinho do mundo que minha mãe cobre a dívida que tenho com ela… mesmo sabendo que ela nunca vai cobrar.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech