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Crítica Ms. Marvel | Sobre ser a heroína de sua própria história

Por  • Editado por Jones Oliveira | 

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Marvel Studios
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Logo no primeiro episódio de Ms. Marvel, Kamala Khan (Iman Vellani) desabafa que, entre super-heróis e deuses asgardianos, não é uma menina marrom de Nova Jersey que vai salvar o mundo. É uma fala bem simples que sintetiza muito bem o deslocamento que alguém como a protagonista enfrenta e que resume muito bem a essência da mais nova série do Universo Cinematográfico da Marvel (MCU, na sigla em inglês). E, para nossa sorte, Kamala não poderia estar mais errada.

A apresentação dessa heroína adolescente era muito esperada justamente por trazer uma abordagem diferente para as histórias da Marvel, com uma pegada mais jovem e voltada para um público mais novo. Só que ela conseguiu ir além.

Mais do que ser essa porta de entrada para novos fãs, Ms. Marvel surpreende por trazer uma jornada sobre descoberta e conquista da própria identidade. E isso é muito bem recheado com elementos históricos, étnico, culturais e sociais que enriquecem demais o MCU e a própria personagem em uma construção cuidadosa e delicada como muito pouco vimos nesses mais de 15 anos de histórias.

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Isso porque o discurso afirmativo não está ali apenas pela representatividade. Na verdade, todos esses aspectos servem para dar razão e propósito a Kamala e os seis episódios, ainda que com seus tropeços, faz isso de uma maneira incrível. É uma aventura descompromissada para mostrar que, mais do que salvar o mundo, a menina marrom de Jersey é a heroína de sua própria história.

Puro coração

Não é exagero dizer que Kamala Khan é a própria série. Mais do que os poderes, o lado heróico e toda essa pataquada que a gente adora acompanhar nos quadrinhos e no MCU está ali apenas para complementar a história dessa menina filha de imigrantes paquistaneses que já é dividida entre dois mundos antes mesmo de ter poderes e que, por isso mesmo, busca descobrir quem ela realmente é.

Assim, toda a trama sobre o despertar de suas habilidades e a tentativa de entender de onde elas vêm funciona como uma ótima e divertida alegoria para essa busca por suas próprias raízes e seu lugar no mundo. Nesse sentido, Ms. Marvel toma todo o cuidado para construir essa personagem com calma e explorando muito bem todos os aspectos que a moldam.

E é muito bonito ver isso sendo desenvolvido, principalmente porque a série nos entrega ótimos diálogos nesse sentido. Seja na conversa de Kamala com sua mãe (Zenobia Shroff) sobre a força que vem em abraçar suas origens ou com Nakia (Yasmeen Fletcher) sobre como é se sentir deslocado não pertencendo por completo a nenhum mundo, a jovem vai entendendo que ela é o resultado de todas essas partes e o roteiro sabe explorar isso muito bem em meio à correria sem sentido de cada episódio.

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Até porque isso é muito bem costurado com a construção da heroína que vamos ver ao fim da temporada. Kamala só vai adotar o visual clássico dos quadrinhos no último episódio — e isso está longe de ser um problema. Isso porque, ao longo de toda a temporada, vemos como cada experiência em sua jornada de autodescoberta acrescenta algo que vai resultar na sua persona heróica. Do uniforme ao símbolo, passando pela nome Ms. Marvel, tudo é resultado de entender e aceitar quem ela realmente é.

É por isso que as mudanças feitas nos poderes em relação àquilo que a gente tinha nos quadrinhos funciona muito bem. Embora a luz sólida tenha um aspecto bem genérico, essa é uma alteração que faz muito sentido dentro dessa construção — melhor até do que nos quadrinhos.

Nas HQs, Kamala se descobre uma Inumana e ganha poderes a partir disso. Na série, por outro lado, os seus poderes são uma herança tanto genética quanto histórica e cultural. O que o seriado faz é entrelaçar o surgimento da Ms. Marvel com toda a bagagem que Kamala e sua família carregam de modo que ela seja realmente única.

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Assim, enquanto os gibis mostram que qualquer pessoa poderia ser a personagem, bastando ter sido exposto às névoas terrígenas, a versão do MCU mostra que aquela Ms. Marvel só existe por causa de todos aqueles que vieram antes e daqueles que estão à sua volta. A Ms. Marvel existe somente porque, por baixo dela, há uma Kamala Khan. Tanto que o nome surge como conclusão dessa jornada para descobrir quem ela realmente é, e não apenas uma homenagem a Carol Danvers.

É por essa razão que a série é a própria Kamala — e a atriz Iman Vellani abraça isso de uma forma incrível. A garota incorpora muito bem essa jovem deslocada justamente por também ser essa jovem perdida entre dois mundos e que encara os mesmos dilemas da personagem. Ela faz isso com um carisma apaixonante, daqueles que te faz querer ser amigo da garota e andar com ela no recreio.

Por mais que a série tropece nos vícios do MCU, é a história de Kamala e a entrega de Vellani que fazem tudo valer a pena. Ela é divertida e traz todo esse discurso afirmativo de uma forma leve e interessante. Ela é o maior acerto de toda a série e, sem qualquer exagero, carrega a produção inteira nas costas.

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A História por trás da história

Para além da própria Kamala, o mundo à sua volta é também muito interessante. O fato de os bastidores de Ms. Marvel ser composto por roteiristas e diretores de origem paquistanesa e raízes muçulmanas traz uma riqueza incrível ao texto e às situações apresentadas.

A showrunner Bisha K. Ali é o maior exemplo disso. Ela é uma comediante que se apoia bastante nessa abordagem mais política de situações ligadas à sua origem paquistanesa — e isso fica bem claro na série. Todas as cenas na mesquita, por exemplo, são incríveis justamente por mostrar o que é ser um muçulmano nos EUA diante dessa vigilância constante que a sociedade americana impõe. Há uma ameaça velada com a qual todos ali já se acostumaram a conviver.

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É algo que é desenvolvido de forma muito sutil no roteiro, mas que é muito poderoso quando aparece. Dos oficiais do Controle de Danos invadindo o templo sem respeitar as tradições do lugar, ao simples fato de todos eles já saberem se portar diante de uma batida policial, a série carrega uma crítica tão potente e que deixa claro que ela é muito mais do que “a série da Marvel para adolescentes” que todo mundo pensava.

Ao mesmo tempo, Ms. Marvel também explora a história do próprio Paquistão e da Índia de uma forma bem didática, apresentando ao mundo acontecimentos dos quais somos completos ignorantes e que mexem na geopolítica global até hoje. E por mais que esses momentos Telecurso 2000 quebrem um tanto o ritmo da narrativa, seguem sendo interessantes e ajudam a entender quem Kamala realmente é.

Os vícios do MCU

Para além da fórmula Marvel que o MCU adotou no cinema, o estúdio parece ter desenvolvido também uma estrutura que vem sendo repetida à risca também em suas séries. E é justamente esse o grande calcanhar de Aquiles por aqui. Como dito, Ms. Marvel é uma história sobre a construção dessa personagem em sua busca por uma identidade própria. Os problemas aparecem quando os elementos de quadrinhos são inseridos à força na trama.

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Todo o arco envolvendo os Clandestinos é algo que não funciona e não tem a menor razão de ser dentro da história. O grupo comandado por Najma (Nimra Bucha) não serve para nada além de ficar correndo de um lado para o outro e forçar Kamala a fazer o mesmo. Tanto que a ameaça que eles representam é irrelevante e tampouco interferem na ação final da temporada.

Eles estão ali apenas para executar a dita fórmula que a Marvel vem adotando nas séries do Disney+: construir um mistério, forçar uma referência aos quadrinhos e empurrar a história de verdade para o último episódio, quando tudo vai ser resolvido de forma apressada. É a mesma estrutura de Falcão e o Soldado Invernal, Gavião Arqueiro e Cavaleiro da Lua e que, em Ms. Marvel, é ainda mais aparente.

No fim das contas, esse grupo comandado pela sósia paquistanesa da Juliana Paes não adiciona nada à história. Na verdade, eles mais confundem e atrapalham do que ajudam. Não por acaso, os episódios centrados neles são os mais cansativos, já que eles não levam a lugar algum.

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Entre erros e acertos

Apesar de os Clandestinos serem um erro enorme, Ms. Marvel não é sobre eles. Por sorte, Kamala e sua história pessoal é tão maior que o saldo final é muito positivo. O resultado é uma série que é puro coração, daquelas que te deixam sorrindo ao fim de cada episódio.

Iman Vellani merece o mundo, mas a verdade é que o grande acerto aqui é justamente o enorme cuidado e carinho tomado em frente e por trás das câmeras para trazer uma história tão pessoal e significativa para o MCU. Toda essa jornada de descoberta de Kamala é a mesma que milhões de outras meninas marrons das Novas Jerseys espalhadas pelo mundo encaram e é muito bom ver isso representado de forma tão carinhosa e divertida.

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Com esse jeito despretensioso, Ms. Marvel acerta em cheio no papel do herói no nosso imaginário. Toda essa história de herói e da menina com poderes é uma bela alegoria sobre descobrir quem se é de verdade e como as nossas origens e raízes são o que nos trazem aqui. Assim, ver alguém passando pelos mesmos dilemas e trilhando esse mesmo caminho para se tornar alguém melhor e mais poderoso é inspirador, e que reverbera não só na comunidade paquistanesa, mas em diferentes etnias e culturas.

Assim como nos quadrinhos, Kamala Khan chega ao MCU abrindo as portas para uma nova geração do público ao mostrar que, por baixo da máscara, cabem infinitas cores e sotaques — e é isso que nos torna únicos. No fim, o que importa é ser o herói de sua própria história.