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Crítica | Meu Pai é sobre o tempo implacável do relógio da vida

Por  • Editado por Jones Oliveira | 

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É difícil escrever de maneira distanciada sobre algo tão pessoal. O risco de rechear tudo com características falsas pode se tornar inerente. Preciso, portanto, deixar na superfície mesmo minhas sensações particulares, como já fiz outras vezes. Isso porque Meu Pai é um filme arquitetado para causar esse tipo de impacto mais íntimo, que se agarra à memória e sai construindo paralelos em nossas vidas.

Tenho uma tia com a Doença de Alzheimer. Há anos, não tenho muito contato com ela. Moro em outros estados há tempo o suficiente para que, mesmo saudável, ela não pudesse me reconhecer (mas reconheceria). Sei do seu estado por causa de minha mãe, sua irmã: como ela telefona para rezar antes de dormir e pedir por minha avó, falecida há 20 anos. Mas Meu Pai não é sobre o Mal de Alzheimer. Anthony (Anthony Hopkins) não é portador da doença. O filme de Florian Zeller é sobre a solidão, sobre envelhecer, sobre o grupo de sintomas da demência e, sobretudo, sobre quem somos.

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Atenção! Esta crítica pode conter spoilers sobre o filme!

A visão de exemplo em ruínas corajosas 

Assim como estou distante de minha tia, também estou dos meus pais. Saí da casa em que cresci há 18 anos e construí parte do meu caminho a milhares de quilômetros de lá. Hoje, estou há algumas centenas — muito mais próximo. De todo modo, durante essas quase duas décadas, não vi meus pais envelhecerem. Claro que acompanho o máximo que posso e estou sempre em contato, mas o impacto é muito maior quando não nos vemos, pessoalmente, com frequência.

De repente, meu pai, antes forte e faz-tudo, não pode mais fazer trabalhos braçais na casa que ele ergueu com as próprias mãos; começou a se perder até em lugares pequenos (como dentro do meu apartamento de dois quartos); passou a repetir histórias já contadas — inclusive no mesmo dia —; e tem mudanças de humor drásticas. O mesmo homem que é meu exemplo de visão e de esperança pelo mundo — mesmo que seja um lugar em ruínas — começa a ver defeito em tudo e, irritadiço, desgosta-se da humanidade.

No sentido de causar uma experiência real, a direção de Florian Zeller não se coloca na posição de quem, como eu, é filho. O diretor parece querer que experenciemos a condição da demência senil em primeira pessoa. Logo, importa menos — ainda que importe — o que é presenciado por Anne (Olivia Colman — que demonstra sua grandeza como coadjuvante) e mais as sensações da personagem de Hopkins. Ao provocar a desestabilização do espectador com suas trocas no elenco e suas elipses quase alucinatórias, Zeller promove uma espécie de experimentalismo — o que, para um estreante, é muito corajoso.

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Fisicamente próximo, humanamente incorporado

O roteiro de Meu Pai, baseado em peça teatral do próprio diretor e escrito por ele e Christopher Hampton (oscarizado por Ligações Perigosas), não se desvia muito do caráter teatral. As saídas e entradas de personagens em cena acabam por fomentar essa condição. O que não é um ponto negativo, visto que muito do que Zeller faz, enquanto diretor, é buscar um ritmo urgente e vivo — típico do teatro.

Por essa perspectiva, a montagem de Yorgos Lamprimos (de Custódia) é, em síntese, uma aula de ritmo e, especialmente, de como desestabilizar o público por meio deste (do ritmo). Não há espaço de respiro nas mudanças que ocorrem no elenco, na história e nas conclusões. Da mesma forma que Anthony se perde, o espectador pode ser sugado para um redemoinho de informações — visuais ou não. Mistura-se filme e público em uma espiral de devaneios que não é mais do que a mente de um homem que, então solitário, envelhece se dando conta de que a demência está o consumindo.

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Há uma cena tão bonita e triste no filme que, de repente, pode revelar o poder do declínio cognitivo condicionado por uma doença da idade: quando Anthony sapateia para Laura (Imogen Poots), seu físico fragilizado está ali — e Zeller o mostra em corpo inteiro —, mas ele está criando uma história, o que o torna vivo. Por outro lado, todo causo criado por alguém com sintomas de demência pode se tornar realidade para aquela pessoa. Nesse sentido, enquanto o Alzheimer apaga memórias, a condição de Anthony pode criá-las.

É, na prática, como um mecanismo de defesa para aquele homem, porque, ao se ver — mesmo inconscientemente — destituído do seu lugar (o apartamento) e de quem mais ama (suas filhas) —, resta-lhe se manter vivo dentro de sua mente. O mundo passa a ser um lugar pessoal demais e tudo começa a lhe afetar de maneiras diferentes. Zeller, assim, dirige Meu Pai com o intuito muito claro de nos colocar fisicamente próximo aos personagens (como no teatro) e dentro da mente do seu protagonista.

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Uma carta para meu pai e para meu filho

Hopkins, então, é a consagração do filme. É verdade que estamos acostumados a vê-lo interpretando personagens fortes, mesmo com sua idade avançada. Recentemente, pudemos vê-lo como o rígido Ratzinger em Dois Papas (de Fernando Meirelles, 2019) e até como o deus supremo da mitologia nórdica Odin no Universo Cinematográfico Marvel (UCM). Nessa lógica, entrar em contato com Anthony (o personagem) é como ver seu próprio pai forte em um momento e, no contato seguinte, percebê-lo frágil — mesmo que ele bata o pé dizendo "sou mais forte do que os jovens de hoje".

Infelizmente não, pai. O senhor pode não ter mais toda essa força, mas tem a eternidade na minha memória (e de minha irmã); tem a infinitude de um homem que, literalmente, tirava do próprio prato para que pudéssemos comer; de alguém que, formado — depois de comer folhas de cajueiro para estudar sem desmaiar de fome —, doou-se para os filhos a ponto de pintar muros e consertar telhados de uma boa escola durante anos para que estudássemos lá com bolsa (afinal, não podíamos pagar).

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Meu Pai, no final das contas, é uma experiência de cinema viva porque, depois de tudo, ele é, sim, sobre a solidão do seu protagonista, sobre o envelhecer e sobre o grupo de sintomas da demência, mas também é sobre quem somos. Porque o filme pode fazer com que nos coloquemos no lugar dos nossos pais, tios, avós... Esse exercício de empatia é fundamental para que nos conscientizemos sobre a vida e sobre os porquês de sermos quem somos.

Posso, hoje, estar na posição de Anne, mas a existência inverte os papéis em um piscar de olhos. Porque o tempo é implacável. A busca pelo relógio da vida e o medo de que alguém mais jovem o roube faz parte do meu futuro. Mas, hoje — no presente —, eu só espero ser cada vez mais frequente na vida do meu pai e que, no futuro, meu filho possa me entender caso eu fique irritadiço e me desgoste da humanidade.

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*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech