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Crítica | Lovecraft Country é um soco no estômago da América racista

Por| 20 de Agosto de 2020 às 20h30

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Reprodução/HBO
Reprodução/HBO

Howard Phillips Lovecraft é um dos autores mais cultuados de todos os tempos. Nesta década, o escritor de Providence, nos Estados Unidos, passou a ser mais revisitado, inclusive pelas gerações mais novas. Seu terror cósmico tem influenciado mais filmes, como a Cor Que Caiu do Espaço; quadrinhos, a exemplo de Black Hammer; e games (como os da série Souls). E com essa referência aumentando, passou do tempo de falarmos sobre algo que incomoda a grande maioria dos fãs: o racismo e a xenofobia nada discretos na obra e na vida de H.P. Lovecraft.

E a melhor maneira que você pode abordar esse assunto atualmente é assistindo a Lovecraft Country, nova série da HBO que adapta o livro Território Lovecraft, escrito por Matt Ruff. A atração foi criada pela jovem roteirista Misha Green, que trabalhou em Heroes e Sons of Anarchy. A produção executiva é do nerdão J. J. Abrams e de Jordan Peele, diretor de Corra! e um dos expoentes do pós-terror. O primeiro episódio foi ao ar no domingo passado (16).

Ok, vamos à sinopse: o ex-soldado Atticus Turner (Jonathan Majors) deixa a Flórida para retornar para sua casa em Chicago, nos Estados Unidos segregacionistas da década de 1950. Ele decide voltar ao receber uma carta misteriosa de seu pai distante, Montrose, que teria ido para Ardham, Massachusetts, em busca de pistas sobre a mãe de Atticus.

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Ao chegar em Chicago, Atticus reencontra a amiga de infância Letitia Lewis (Jurnee Smollet-Bell) e seu tio, George (Courtney B. Vance). O trio parte em uma viagem para Ardham e, ao longo do caminho, vemos uma escalada de ódio e violência em meio à opressão racial, enquanto estranhas mortes acontecem na calada da noite, envolvendo relatos de criaturas nos cantos mais escuros das florestas.

Atenção, a partir daqui há spoilers sobre o primeiro episódio de Lovecraft Country!

Cores berrantes e dezenas de referências

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A primeira coisa que já chama a atenção é a cena de abertura. Em referências que se perdem em Guerra dos Mundos, O Chamado de Cthulhu e Uma Princesa de Marte — com direito a uma versão coreana de Dejah Thoris —, temos, logo de cara, uma amostra impactante do que vem por aí. As cores em alto contraste e a ambientação surreal fazem parte de um sonho de Atticus, mas, quando somos levados para a realidade, essas tonalidades berrantes continuam.

É quase como se sonho e realidade não fossem tão distantes assim. A fotografia faz “homenagens” aos panfletos racistas da época e o exagero vai tornando à opressão racial da trama cada vez mais agressiva aos próprios olhos da audiência. E não faltam citações históricas para ambientar o espectador: a construção da Casa Branca por escravos, o Livro Verde do Negro Motorista (que também foi abordado no oscarizado Green Book: O Guia), o primeiro jogador negro da Major League Baseball, Jackie Robinson; a Lei Jim Crow. É até possível ver cenas que homenageiam os mesmos ângulos do trabalho do cineasta e fotógrafo Gordon Parks.

Em uma das passagens, fica claro qual é a intenção de Misha e Peele. Ao descrever a Princesa de Marte, de Edgar Rice Burroughs — outro clássico autor, que, a exemplo de Lovecraft, alimentava ideias xenófobas e racistas —, Atticus recebe o seguinte questionamento sobre o herói branco do livro: “Espere aí, você me disse que o herói é um soldado confederado? Ele lutou para manter a escravidão”.

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Essa é a deixa para compreendermos melhor esse quase “revisionismo histórico” de Lovecraft Country. Olhe bem para trás e tente imaginar uma criança negra, fã de ficção científica crescendo nos anos 1950, encontrando pela frente somente os heróis brancos e heterossexuais dos livros de Lovecraft, Burroughs e mesmo dos autores que viriam nos anos seguintes — que, embora não estejam associados ao racismo, poucos fizeram questão de oferecer mais diversidade e representatividade.

Ao passo que a violência e o ódio escalam em Lovecraft Country, vamos sentindo o horror que é um homem branco com uma arma na mão — e como a polícia representa muito mais uma ameaça do que uma proteção nesse contexto. Isso é narrado nos moldes dos próprios autores que influenciam a obra — é como Misha e Peele usam o pós-terror para reescrever o gênero popularizado por Lovecraft em um novo subgênero, o “terror cósmico social”. É como se os produtores usassem a própria máquina que os massacrou para “consertá-la”, oferecendo uma perspectiva mais ampla do terror e da ficção científica como gêneros literários e como coadjuvantes para o cenário estadunidense.

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Isso tudo vem embalado em um road movie, que faz questão de mostrar que as mazelas da época estão presentes até hoje: há canções de época, mas em uma cena é possível ouvir Clones, da rapper Tierra Whack; e a personagem Letitia Lewis não somente reflete o que era ser mulher e negra naquele período como também carrega o comportamento das mulheres de hoje para enfrentar a opressão racial e… monstros.

Atuação e tom supreendente

Como sempre, a produção da HBO é impecável. A atuação dos atores é sólida e há muita química do trio que parte para a road trip. Os cuidados estéticos para mostrar as referências e as cores em alto contraste, com uma fotografia meticulosamente planejada, tornam a ambientação em uma experiência às vezes incômoda, especialmente por nos fazer refletir sobre como o mundo não mudou muito de lá pra cá; mas sempre hipnotizante.

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E no terceiro ato do primeiro episódio vemos um plot twist que parece ter o dedo de J.J. Abrams: enquanto o terror social de Peele avança pelas mãos de Misha nos dois segmentos anteriores, no terceiro realmente vemos a cara — e a agressividade — das criaturas que estão causando os estranhos assassinatos noturnos.

Essa virada quase sobrenatural em uma história mais “pé no chão”, até então, compõe um mix interessante e muito diferente do que vimos por aí em atrações semelhantes nos últimos anos. O resultado é impressionante e muito curioso — fica difícil não querer saber o que vem por aí.

Vale a pena?

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O afrofuturismo é uma corrente que tem mostrado nos últimos anos como a ausência de escritores (e personagens) negros fizeram falta à literatura de horror e ficção científica ao longo dos anos. Lovecraft Country se encaixa nesse movimento e vem para criticar e preencher lacunas, com um “terror cósmico social” em forma de “road movie” na série da HBO.

É para quem gosta da obra de Lovecraft e para quem gosta de mistério e ficção científica. É para os amantes de boa narrativa e ótimos personagens. E a discussão sobre o racismo, machismo e opressão social presentes na série são tão importantes e atuais que não deixam de tornar a atração da HBO ainda mais relevante para o momento em que vivemos: o de reconstrução de nossa própria história.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech.