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Crítica Espíritos Obscuros | A metáfora que se perde em seu próprio sentido

Por| Editado por Jones Oliveira | 29 de Outubro de 2021 às 19h30

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Divulgação/Searchlight Pictures
Divulgação/Searchlight Pictures

Espíritos Obscuros começa questionando o que é uma narrativa. Em uma cena dentro de uma sala de aula, a professora Julia Meadows (Keri Russell) explica aos seus alunos que mitos e lendas são histórias que existem para dar forma ao nosso mundo, uma representação fantástica da realidade à nossa volta. E, curiosamente, o filme produzido por Guillermo del Toro (O Labirinto do Fauno) e dirigido por Scott Cooper (Coração Louco) não consegue fazer isso, se perdendo dentro da própria narrativa que tenta construir.

A história do longa é bastante simples: uma professora de ensino fundamental volta para uma cidadezinha no interior dos Estados Unidos e percebe algo de estranho em um de seus alunos, Lucas (Jeremy Thomas). Bastante introvertido e com sinais de violência e desnutrição, ela acredita que o menino vem sendo alvo de maus tratos e, de repente, descobre que isso está relacionado a uma série de assassinatos que acontecem na região e na existência de um monstro mitológico que habita aquelas florestas.

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Para isso, Espíritos Obscuros se apoia na figura do Wendigo, uma entidade que aparece nas lendas dos povos nativos norte-americanos e que é retratada como um espírito de fome insaciável que faz as pessoas se tornarem canibais. Só que o filme não se importa com o significado do mito original, mas apenas com a imagem do monstro que habita dentro de seu hospedeiro — algo que é crucial para a trama e com muito potencial para ressignificar a lenda, mas que o roteiro não consegue explorar isso a seu favor.

Sem rumo

Ao trazer essa criatura das lendas para a realidade, o longa tenta criar essa narrativa alegórica sobre o abuso parental. A criatura com presas e chifres no qual o pai de Lucas se transforma representa esse monstro que habita o homem e que abusa de seus filhos. Por isso, o menino está a todo o instante tentando saciar essa fome metafórica do pai, satisfazendo suas vontades para mantê-lo sob controle.

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Essa leitura ecoa com a própria história de Julia. A professora é apresentada como alguém que tem as suas questões com o passado por também ter sido alvo das monstruosidades do pai. Ela foi abusada sexualmente no passado por quem devia protegê-la e ela carrega as marcas disso até hoje.

Toda essa alegoria seria muito interessante se Espíritos Obscuros conseguisse amarrar essas histórias e desenvolver seus personagens de modo a fazer com que as tramas se entrelaçassem. O problema é que o filme não consegue fazer essas histórias conversem entre si. Ele ensaia alguns paralelos, mas tudo é solto e desconectado, tirando peso da narrativa que tenta ser montada.

Parte disso está justamente no mal desenvolvimento de seus protagonistas. Todo o passado de Julia é jogado sem um cuidado de explorar e aprofundar essas questões delicadas, o que faz com que as tentativas do roteiro de conectá-la à atual situação de Lucas soem forçadas. Ela tenta um diálogo sobre como seu pai a machucou, mas isso pouco tem peso quando a gente percebe o quanto ela é unidimensional.

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Apesar de sua trágica história, a personagem de Russell é unicamente a “professora com um trauma”, sem qualquer camada ou profundidade que vá para além disso e não traz nenhum tipo de evolução — tanto que ela mal possui um arco narrativo. Julia termina o filme da mesma forma que começou, sem avançar em nada em suas questões familiares e também sem entender por que Lucas protege o pai mesmo quando o vê matando pessoas pela cidade.

Assim, a sua tentativa de se conectar com seu aluno se torna vazia, já que o longa não consegue fazer com que ela trace esse paralelo entre o monstro literal e o figurado e muito menos nos impactos que eles trazem para suas vítimas.

Aliás, o próprio filme tem dificuldade em fazer essas duas histórias se cruzarem, principalmente quando passa a humanizar o Wendigo. Faz todo o sentido Lucas tentar protegê-lo, pois, aos olhos de uma criança, o monstro ainda é o seu pai e o raciocínio infantil o faz acreditar que basta satisfazer suas vontades para que essa fúria bestial seja controlada — ainda que a fome nunca vá embora. Aí, o papel de Julia seria tirar a criança desse ciclo e mostrar para ele que não há uma forma de fazer isso acabar bem.

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O problema é que Espíritos Obscuros cai no erro de mostrar a criatura realmente como essa figura paterna mesmo depois de transformada. Em nenhum momento o pai de Lucas é apresentado como alguém abusador — pelo contrário. Embora seja um viciado, ele cuida dos filhos e mesmo quando está perdendo o controle e virando essa fera, é mostrado ele criando formas de manter os filhos a salvo. E depois de se tornar o Wendigo, o seu instinto de cuidar dos filhos ainda aparece. Assim, toda a metáfora sobre o abuso é jogada fora quando o próprio filme faz questão de mostrar que ele não era tão mau assim.

É isso que faz com que a história de professora e aluna não dialoguem. O longa deixa claro que o monstro-pai e o pai-monstro não são a mesma coisa e isso faz com que as experiências de Lucas e Julia simplesmente não conversem. Dessa forma, toda a narrativa que ele tenta construir sobre um tema delicado e importante se esvai por completo.

Sem suspense, sem terror

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A impressão que se tem é que Espíritos Obscuros parte de um argumento muito bom, essa imagem central do menino que tenta manter o monstro do pai sob controle, mas não sabe o que fazer com isso. O roteiro é construído a partir de um conto escrito pelo autor Nick Antosca — que também assina a adaptação cinematográfica —, mas claramente tem dificuldades de expandir a história para além desse ponto inicial.

É um conceito interessante, mas que perde o rumo e passa a seguir à deriva ao longo das quase 1h40 de história. Ele é um suspense que não se preocupa em criar o mistério e entrega tudo logo de início. A revelação de que o pai de Lucas é o responsável pelas mortes na cidade acontece já no começo do filme e o roteiro não se interessa em desenvolver uma tensão ou uma dúvida sobre o que está acontecendo. Tudo é muito claro e você sabe desde o princípio o que é a criatura e o que isso significa. A maior preocupação parece estar em aproveitar o DNA de Guillermo del Toro no visual da criatura.

Tanto que a grande interrogação são os rumos do roteiro. Como tudo é explícito, não há um grande ponto de virada em que tudo faz sentido e a única coisa que você se pergunta é para onde a trama está indo — e, nesse caso, nem mesmo o longa sabe.

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E talvez aqui esteja o grande problema de Espíritos Obscuros. Por ter sido inspirado em um conto, a mudança de mídia parece ter sido a grande responsável por tirar todo o peso das representações que a história se propunha a trazer.

Na literatura, é muito mais fácil trabalhar com a ambiguidade da figura do monstro, uma vez que não há uma imagem ali para entregar o que está acontecendo e cabe à imaginação do leitor preencher essa lacuna e atribuir os significados à narrativa. No caso do cinema, quando ele não é bem feito, tudo se torna expositivo demais e isso pode ser fatal.

Ao mostrar o pai de Lucas como o monstro já nos primeiros minutos, todo o suspense que dá força à alegoria se esvai. Como não há uma preocupação em brincar entre o que é literal e o que é figurado, o título se debruça apenas em criar uma grande metáfora sobre um assunto delicado — mas se esquece do desenvolvimento desses elementos em tela. Ao se apoiar apenas na imagem pela imagem, ela fica completamente vazia de sentido e o peso da narrativa se esvai.

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Uma narrativa é uma história que dá forma ao nosso mundo, representando a realidade à nossa volta. Só que, para ela funcionar, é preciso saber trabalhar essas conexões entre as imagens e os significados — e Espíritos Obscuros tenta fazer isso acontecer, mas tropeça no seu próprio entusiasmo de criar um grande mito moderno e mal consegue apresentar um suspense que preste.

Espíritos Obscurosestá em cartaz nos cinemas de todo o Brasil; garanta seu ingresso na Ingresso.com.