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Crítica | Dois Estranhos tem peso histórico em sua indicação ao Oscar

Por| Editado por Jones Oliveira | 14 de Abril de 2021 às 15h00

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Muitos filmes já trouxeram a repetição temporal como um mote principal, geralmente interligando as atitudes da personagem protagonista na busca por ser alguém melhor. Um deles — talvez o mais famoso — resultou até mesmo na popularização do Dia da Marmota: Feitiço do Tempo (de Harold Ramis, 1993). O filme de Ramis, além de fazer rir com muita competência, também consegue extrair reflexões pontuais a partir das situações vividas por Phil (Bill Murray). É, na prática, um filme-personagem.

Dois Estranhos, porém, apesar de ter um protagonista muito claro, está muito longe de ser esse tipo de filme. O trabalho dos diretores Travon Free e Martin Desmond Roe é muito mais um filme-situação. Eles se utilizam de uma realidade nua e crua para provocar reflexões extrafilmes que podem ser dolorosas. Nesse sentido, não há o uso da ficção para comentar o real, mas o uso do real para construir uma ficção que é reflexo da realidade.

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Atenção! Esta crítica pode conter spoilers sobre o filme!

Força absurda e número assustador

Free e Desmond Roe conseguem manter acesa a atenção em Dois Estranhos desde a primeira cena. Quando Carter (Joey Bada$$) surge deitado, mas em close e com a imagem vertical. Essa utilização da imagética expõe aquele homem como se ele estivesse em pé, como se pudesse dizer, antecipadamente, que ele cairá, mas há algo muito maior que permanecerá vivo. Isso porque Carter não é somente um homem como Phil, mas é, também, a representação de uma causa.

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O curta-metragem — que é, mais especificamente, um média, com seus 32 minutos de duração — é recheado de composições visuais ricas e dolorosas, como a que instantaneamente remete ao assassinato de George Floyd. Alguns momentos, como este, são até difíceis de assistir, dada a gratuidade das agressões e a força absurda da submissão imposta pelo policial Merk (Andrew Howard) e por colegas (Cameron Early, Jeremy Rivette e Trevor Morgan).

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Acontece que esse tipo de situação que o filme tão bem demonstra é algo sofrido no cotidiano pela comunidade negra em um país dito civilizado como os EUA. Talvez nem seja necessário ir para tão longe para se encontrar casos semelhantes, visto a segregação racial que toma conta de boa parte do planeta. No Brasil, por exemplo, o número de assassinatos que podem ser explicados pela prática do racismo é assustador.

Que não esqueçamos

A potência de Dois Estranhos, porém, vai além da exposição pertinente e de seu ativismo tão contundente; ela está na subversão de alguns valores trazidos por outros filmes. Não satisfeito por transformar um filme-personagem em um filme-situação, o roteiro de Free cria a percepção do policial branco que compreende a realidade do protagonista negro, ajudando-a com uma carona para casa — no banco de trás da viatura (atrás de grades) — e, logo, demole essa estrutura de quase bom-mocismo. O roteirista confronta obras que transformam personagens brancos em criaturas que, lá no fundo, são bondosas, como os premiados Green Book: O Guia (de Peter Farrelly, 2018) e Histórias Cruzadas (de Tate Taylor, 2011).

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É corajoso, ainda, que o texto de Free seja exposto de uma forma tão pulsante e traga toda a carga de um continente. O peso, quando da última morte de Carter, é histórico, de mais de quatro séculos desde a chegada do primeiro navio de escravos nos EUA. O sangue dele (de Carter) é o sangue de todos os seus — de todos os nossos —; é o sangue da revolta; é o sangue como um grito; é o sangue que sai de um homem — que representa uma causa — e, ali no asfalto, forma a África.

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Os diretores são felizes, ainda, em utilizar o God’s eye view (ponto de vista de cima) repetidamente. Assim, como se a lente da câmera fosse o olhar de um deus, eles observam primeiro a cidade e por último o corpo de Carter, de repente, como se a onipresença divina nada pudesse fazer. É porque depende dos homens, de cada um de nós, um mundo melhor. E é necessário que coloquemos o dedo na ferida, que dêmos voz aos que foram silenciados de maneira brutal, que não esqueçamos dos tantos Floyds por lá e, por aqui, dos nossos Evaldos (Rosa dos Santos).

Dois Estranhos está disponível no catálogo da Netflix e concorre ao Oscar 2021 de Melhor curta-metragem em live action.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech.