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Crítica | Uma Noite em Miami tem a força das palavras

Por| 15 de Fevereiro de 2021 às 21h00

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ABKCO Films
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Por mais que traga personalidades fundamentais para a compreensão da luta do Movimento dos Direitos Civis nos Estados Unidos, Uma Noite em Miami é um relato fictício. Mesmo assim, é uma história sustentada pela situação, pela força da batalha necessária que viria a desencadear em uma convulsão cultural na década 1960.

A diretora Regina King, oscarizada como atriz coadjuvante por Se a Rua Beale Falasse (de Barry Jenkins, 2018), tem uma estreia em longa-metragem para cinema que, além de ser alicerçada em uma realidade forte e indigesta, tem seu poder nas palavras. Os diálogos são um motor que conduz o roteiro de Kemp Powers (baseado em uma peça teatral dele mesmo). King, dessa maneira, deixa que as palavras fluam por si, interferindo de fato em pouco momentos.

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Atenção! Esta crítica pode conter spoilers sobre o filme!

Lobos

É interessante perceber como os pontos de indigestão são tratados com naturalidade pela diretora, que parece querer alfinetar com a normalidade, sem aumentá-la — visto que tudo já era absurdo demais. Para isso, as sequências iniciais são fundamentais. Cassius Clay (Eli Goree) lutando contra um adversário branco e sendo xingado pelo público; Sam Cooke (Leslie Odom Jr.) sendo achincalhado por uma plateia branca; e Jim Brown (Aldis Hodge) recebendo honrarias de um dono de terras para, logo, não ter permissão para sequer botar os pés da Casa Grande.

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Essa cena da personagem de Hodge, aliás, consegue revelar o talento da diretora tanto para conduzir o ritmo de um debate quanto na escolha de alguns planos. A negativa sobre a entrada de Jim na casa é seguida por uma opção inspirada: King revela o interior imaculado da casa e, centralizada, a porta de entrada com o jogador da NFL do lado de fora. Acontece que, apesar de imaculada, a casa está nas sombras, no escuro, enquanto o exterior é iluminado, vivo.

Essa forte relação simbólica das imagens, de todo modo, não tem muito espaço em Uma Noite em Miami. A questão principal da proposta de King parece ser trazer seus personagens justamente à vida. Suas paixões e crenças são retiradas das notas de rodapés de suas existências e expostas de maneira clara e objetiva. Aliás, é tudo muito relevante para a atualidade, que parte de um desabafo de Jim, dizendo de sua preferência por racistas assumidos ao invés dos velados. Estes que, em pele de cordeiro, podem utilizar a causa em prol de seu próprio bem-estar.

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Do micro ao impacto no macro

Malcolm X (Kingsley Ben-Adir), em meio a tudo, talvez seja o personagem mais complexo entre os quatro amigos. Sua luta é direta e, em meio a ela, sofre com a relação conflituosa junto a Elijah Muhammad (Jerome A. Wilson), líder do grupo Nação do Islã. Ainda, é Malcolm quem, aos poucos, vai revelando seu medo premonitório sobre o próprio futuro e de sua família. As cenas, portanto, em que se relaciona com a esposa (Betty — Joaquina Kalukango) e a filha (Attallah — Nola Epps) são das mais sensíveis do filme, em especial quando a pequena pede à mãe para conversar por mais algum tempo com o pai.

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Toda a complexidade do homem que conseguiu mobilizar negros e brancos na conscientização sobre os crimes cometidos contra a população afro-americana ganha contornos ainda mais intensos quando Jim (novamente ele) questiona sobre as diferenças entre os irmãos de pele mais escura e aqueles com pele mais clara (como Malcolm). Nesse ponto em especial, pode ficar a impressão de que King poderia ter extraído mais, poderia ter ido além da força das palavras e alcançado um poder de sensação maior. Ela, porém, evita até mesmo closes, deixando que a conversa guie a cena.

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Por outro lado, é uma escolha corajosa, visto que Malcolm X era, exatamente, um homem de palavras, de discursos. Enquanto a diretora evita interferir nesse lado, Jim, Cassius e Sam parecem translacionar ao redor da personagem de Ben-Adir. São o sol em implosão e três planetas com seus mais variados satélites: a religião, as artes, o futuro... e, daquele universo micro, logo seriam tomadas decisões que impactariam a cultura pop, a política, os esportes e a sociedade como um todo de um jeito que eles nem poderiam imaginar.

Sem medo

Uma Noite em Miami diz mais sobre cada um dos seus personagens do que muitas cinebiografias individuais. De repente, isso se deve ao fato de que Powers e King veem humanidade naqueles homens e partem desse princípio, de que é por meio de seres humanos que podemos alcançar mudanças históricas.

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A diretora, enfim, atriz competente que é, concentra-se muito mais no desempenho do elenco e nas linhas de frases do que em uma linguagem rebuscada. No final das contas, isso é, por si só, uma prova de que ela sabia muito bem o que dizer e não tem o menor medo de o fazer de maneira direta, clara e objetiva. King é uma estreante a ser acompanhada de muito perto.

Uma Noite em Miami está disponível no Amazon Prime Video.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech