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Crítica | O feminismo cuidadoso e contundente de Bela Vingança

Por  • Editado por Jones Oliveira | 

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Focus Features
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Não existe uma fórmula perfeita para assistir filmes (ou ter contato com obras de arte). Cada obra causa um impacto diferente e demanda coisas diferentes de cada espectador e, no caso de Bela Vingança, não podemos fugir muito do maniqueísmo dos gêneros. Nesse ponto, o filme depende da identificação gerada com o público feminino e/ou queer, e da empatia dos demais grupos. Em Bela Vingança, nem todos os homens são vilões, o que já demonstra uma recusa da cineasta Emerald Fennell em fazer generalizações.

Por outro lado, histórias se repetem. Há muito falamos e, conforme ganhamos espaço e voz, temos a oportunidade de contar e recontar essas histórias na esperança de que mudanças mais significativas ocorram. Para além de documentários como Rede de Abuso, que expõem a realidade do machismo estrutural, a ficção tem trazido muitas mulheres pistolas.

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A Vingança de Jennifer (que ganhou o remake Doce Vingança), Garota Sombria Caminha pela Noite, Elle e Bela Vingança são apenas algumas das muitas histórias de mulheres que estão sem paciência, porque já sofreram demais nas mãos dos caras. E para quem acha que isso é um "mimimi" contemporâneo, vale a pena conhecer vidas como a da pintora Artemisia Gentileschi, que viveu entre 1593 e 1653, período em que pôde deixar para a história suas próprias ficções de vingança.

Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.

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Nem sempre o tema ou a história são os elementos mais fortes de um filme, ainda que cinema seja uma forma de contar histórias. Às vezes, o conteúdo está ali apenas para o desenvolvimento da técnica, mas este não é o caso de Bela Vingança. Apesar de produzido pela Focus Features, o longa-metragem é um indie pop com aquela paleta pastel que deixa quase tudo muito gostosinho de se ver, como uma vitrine repleta de macarons de todas as cores.

A leveza da fotografia e da direção de arte, no entanto, contrastam diretamente (e propositalmente) com o conteúdo, que é nada leve. A cultura do estupro, presente de forma quase sistemática em alguns ambientes como escolas e universidades, continua existindo mesmo quando os “garotos” se tornam homens adultos e supostamente mais conscientes das suas ações. Bela Vingança expõe o que muitas mulheres já sabem por experiência própria: não é uma questão de maturidade, mas sim de empatia, conhecimento e ética (ou moral, como preferir).

O filme desmistifica a ideia de que a mulher bêbada “pediu” pelo que aconteceu com ela, algo que vemos comumente quando há culpabilização da vítima. O que Cassandra (Carey Mulligan) faz, na primeira parte, é justamente demonstrar isso: ela nos mostra que quando demonstrava estar sóbria, os homens desistiam de ter relações com ela. É importante notar que a relevância disso encontra inúmeros respaldos na vida real. Eu mesma tenho minhas próprias histórias.

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Fennell, no entanto, é extremamente cuidadosa ao criar essas sequências. Cassandra sempre dá claros sinais (ainda que falsos) de que não está consciente e é justamente isso que ativa o “modo predador” em suas vítimas, colocando esses personagens como reais vilões e demonstrando que o ódio não é pelo gênero masculino, mas pelas atitudes que continuam sendo normalizadas, inclusive por mulheres, como a reitora da universidade.

Depois, quando Al (Chris Lowell) entra na história, o que Cassandra faz é criar situações para que algumas pessoas sintam na pele o que ela ou Nina sentiram, ou seja, sofrer o estupro ou viver com a ideia de que uma pessoa amada passou por essa situação. O filme ainda expõe como as mulheres costumam carregar os traumas para o resto das suas vidas, enquanto os homens têm uma facilidade muito maior de se livrar dessas situações, inclusive juridicamente.

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Bela Vingança é muito cuidadoso como um filme feminista que não recai no femismo, ou seja, um filme que evoca a discussão por sua urgência, mas sem intenção alguma de vilanizar todos os homens (vale repetir). A inserção do romance, inclusive, demonstra como Cassandra estava disposta a viver uma nova vida e superar suas dores e traumas. Ryan (Bo Burnham), embora muitas vezes pareça uma vítima, um cara legal que não fez nada demais, é, na verdade, um dos personagens mais complexos e nocivos da trama.

Ryan é a representação do machismo mais difícil de ser detectada. Com ares de príncipe encantado de filmes românticos, ele pode até mesmo alimentar a esperança de que um relacionamento saudável seria capaz de “salvar” Cassandra. A recusa da protagonista diante do pedido de perdão, no entanto, expõe outro detalhe: acabar com a cultura do estupro também é uma responsabilidade masculina. Ser conivente com um estupro não é menos pior do que ser o próprio estuprador.

Coringa

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De 2020, Bela Vingança chamou ainda mais a atenção dos espectadores quando o foi indicado ao Oscar 2021 (Melhor Filme, Melhor Direção, Melhor Atriz, Melhor Roteiro Original e Melhor Edição). A popularização levantou rumores e debates sobre a semelhança do filme com Coringa. Particularmente, acredito que os filmes são sobre coisas completamente diferentes, mas uma das interpretações de Coringa levanta reflexões interessantes em Bela Vingança: a interpretação que vê Coringa como um incel.

Em Bela Vingança, sequências como as que mostram Cassandra com a cabeça para fora do carro em movimento ou borrando o batom vermelho diante do espelho evocaram as imagens similares do Coringa que vimos em suas versões cinematográficas. O que é uma conexão interessante e que revela o background dos espectadores.

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Não defendo a ideia de que Coringa seja um incel (embora esteja aberta a contra-argumentos), mas é inegável que a internet fervilhou com o assunto após o lançamento do filme. Como resposta, o que Bela Vingança faz é remover o caráter de vilã das mulheres e demonstrar o porquê de muitos homens serem rejeitados (e empurrados para o que chamam de "celibato involuntário"): suas próprias atitudes machistas.

A comparação com Coringa, agora que Bela Vingança está concorrendo às populares estatuetas, atingiu outro nível de discussão, que tem a ver com os incels, mas extrapola muito esta questão: a raiva feminina será respeitada da mesma forma como é respeitada a raiva masculina?