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Crítica | #Alive mira nos zumbis e acerta no público ao criar terror indie k-pop

Por| 16 de Setembro de 2020 às 11h39

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Filmes indie são, geralmente, contracultura. Enquanto os grandes estúdios seguem produzindo os filmes mais caros, uma indústria menor se sustenta em paralelo, com orçamentos menores e diretores que conseguem produzir com mais liberdade criativa. Ao longo dos anos, o indie consegue estabelecer certas marcas estéticas e até mesmo criar subgêneros. Assim como o cinema indie estadunidense foi uma das raízes mais fortes da Nova Hollywood, hoje vemos o movimento se repetir, com a nova popularização do indie.

#Alive, uma das principais estreias da Netflix em setembro, é louvável em muitos sentidos. Não só a história e o filme em si são interessantes, mas esta é uma obra muito transparente e que nos permite notar o movimento de uma contracultura sendo absorvida e popularizada pela indústria, o que passa tanto pelo conteúdo do filme, quanto por seus personagens, paleta de cores, trilha sonora, fotografia, referências, maquiagem, direção, etc. #Alive mostra ainda um filme que invoca o indie como uma poética dos humilhados que serão exaltados e atinge em cheio diversas categorias nerds, que hoje já não são exatamente um minoria e se tornaram um alvo massivo do mercado.

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De quebra, assim como Host, #Alive é também um produto da pandemia ao focar no isolamento dos sobreviventes de um apocalipse zumbi. Nesse sentido e por ser um filme sul-coreano, ele é a sequência que esperávamos de Invasão Zumbi (já que Península, a sequência oficial, nos entregou um trash de ação de qualidade duvidosa).

Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.

A ascensão dos nerds

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O tema do isolamento veio com um timing perfeito na pandemia e aumenta a identificação por um leque maior de espectadores. Por outro lado, assumir um gamer como personagem principal tornaria o tema do isolamento ainda bastante pertinente. Há muito que ser gamer já passou a ser entendido como trabalho e como um esporte sério, mas isso não significa que o preconceito acabou e muitas pessoas ainda veem os gamers como pessoas perturbadas e sem amigos, que não sabem agir socialmente.

#Alive não só desconstrói essa figura do gamer (e dos nerds em geral), como explica que o isolamento de quem se dedica a atividades virtuais não é a mesma coisa que um isolamento real (de uma pandemia ou de um apocalipse zumbi) e não demora muito para que o protagonista Oh Joon-woo (Ah-In Yoo) comece a se desesperar com o tempo sem contato e sem poder sair de casa.

Em caso de apocalipse zumbi, ainda faz todo sentido que um nerd seja relativamente preparado e, mesmo as formas de isolamento sendo completamente diferentes, não é novidade que os caseiros, gamers, streamers e etc. se sentiram mais confortáveis no início da pandemia. Há, inclusive, uma ode às comidas enlatadas, instantâneas e de longo prazo de validade, alimentos que já são praticamente tradicionais quando se trata de nerds, gamers e afins. Para além disso, os gadgets de Joon-woo são excelentes novidades no cinema de zumbi, que costuma sempre rememorar o uso de bastões de baseball, serras elétricas e facões, o que combina cada vez menos com os ambientes urbanos em que são desenvolvidas essas histórias.

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A popularização da utilização de drones também fica marcada no filme, que aproveita e insere diversos marketings indiretos (product placement) ao longo dos 98 minutos de duração. Embora isso possa ser um ponto negativo para muitos espectadores, essa é uma das formas de se conseguir orçamento para um filme sem precisar se submeter às grandes produtoras. E nesse ponto #Alive demonstra mais uma vez semelhanças com o surgimento da Nova Hollywood: o marketing indireto foi uma das fontes de dinheiro de sucessos como E.T.: O Extraterrestre (1982), de Steven Spielberg, um dos maiores nomes responsáveis pela popularização do que, na época, era indie. O longa sul-coreano não esconde que é um produto e que está promovendo produtos e é importante notar que isso não afeta a qualidade da produção.

Cores

Outro elemento indie é a utilização recorrente de uma paleta de cores bastante notável e que não tenta criar um aspecto de “realidade”. Os indies ocidentais tem um uso recorrente de ciano, magenta e amarelo (seria uma contraposição ao RGB do tradicional Technicolor?), como no recente Palm Springs, ou de tons pasteis e/ou secos. #Alive não esconde também que é um produto internacional e não foge do esquema de cores que podemos ver ser massivamente utilizado no k-pop: tons pasteis utilizados não para suavizar o ambiente, mas para criar um colorido menos chamativo. O pastel, inclusive, surge no uso de roupas desbotadas por parte do protagonista: uma escolha simples, porém perfeita.

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Isso demonstra não só a passagem do indie ao pop através do esquema de cores do filme, como também assume uma identidade visual pop coreana em um gênero geralmente mais marcado por tons de marrom. Mesmo a paleta de cores da maquiagem dos zumbis impõe uma marca. Bastante diferentes dos zumbis padrão The Walking Dead, os zumbis de #Alive fazem referência aos zumbis ocidentais, mas imprimem muito mais a sua própria marca, sobretudo nos olhos esbranquiçados e na expressão corporal dos zumbis.

O uso de cores pasteis também acentua a parte do filme que flerta com o romance e é justamente nesse momento que a direção faz referência aos enquadramentos de um dos maiores nomes indie, Wes Anderson. Quando Joon-woo conhece Kim Yoo-bin (Shin-Hye Park), diversos enquadramentos centralizam a personagem, cujos trejeitos parecem fazer referência também à Ramona de Scott Pilgrim contra o Mundo (2010, Edgar Wright), um dos maiores (se não o maior) títulos nerd-indie-que-ficou-pop.

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Enfim, o filme

#Alive não é um filme ousado no sentido de que rompe barreiras e traz algo completamente novo. Sua originalidade vem justamente do amálgama de filmes ocidentais e orientais em uma produção que conseguiu unir os elementos certos para a criação de um filme com cara de que com certeza iria viralizar.

A história é bastante simples, mas não é clichê ao optar por mostrar a realidade do isolamento durante os dois primeiros atos e abraçando a ação e o drama de zumbi somente na parte final. O isolamento do personagem também permite uma economia interessante no orçamento de um filme apocalíptico e permite que conheçamos melhor o protagonista, criando um vínculo e fazendo com que nos importemos com ele e, posteriormente, também com a sua vizinha. Aliás, é bastante interessante como o filme lida com a vontade de viver, criando os laços entre personagens que flertaram com a morte de forma bastante similar.

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A aparição da vizinha é um Deus Ex Machina, uma solução que vem praticamente do nada para salvar a vida do protagonista, mas que aceitamos de bom grado pela sensibilidade do momento. O final do filme, no entanto, é bastante difícil de digerir. #Alive não é um filme sem defeitos, mas é concebido de uma forma tão competente que ignoramos problemas menores ou mesmo de cunho ético e moral (já que filmes de zumbi sempre evocam essas questões e #Alive tem outras tantas mais).

Um helicóptero que surge literalmente do nada (incluindo o som) para salvar os protagonistas foi um Deus Ex Machina muito improvável e mostra o quanto o filme é muito mais um produto bem concebido que uma obra de arte que apreciamos como fruto da mente de um diretor. Mas como as exigências dos fãs de terror não passam muito pelas qualidades técnicas, até mesmo esse final desanimador não consegue tirar a empolgação com o que vimos. Ainda pensando no helicóptero e em Invasão Zumbi 2, é difícil não pensar também que o resgate por helicóptero momentos antes de morrer nas mãos de zumbis que correm seja alguma espécie de legado de Guerra Mundial Z e uma nova tara dos filmes de zumbi asiáticos.

Do indie ao pop, com referências orientais e ocidentais e um provável amor pelo terror trash (afinal, parece que ninguém fez questão de criar zumbis muito realistas) fazem de #Alive uma peça especial, um filme que demonstra processos complexos como o de globalização e a maleabilidade da cultura nesse contexto, o que tem sua própria beleza e importância. E a cereja do bolo é a figura do gamer ser promovido de loser (fracassado) a herói de ação.

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#Alive está pode ser assistido no catálogo da Netflix.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech