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Crítica | A Voz Suprema do Blues explode em paixão pela vida e competência

Por| 19 de Dezembro de 2020 às 21h00

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É interessante perceber como Chadwick Boseman, falecido recentemente após lutar contra um câncer, faz com que A Voz Suprema do Blues precise muito mais dele do que o contrário. Isso é tão potente que o diretor George C. Wolfe (de Um Momento Pode Mudar Tudo — filme de 2014) parece entender muito bem ao se utilizar de planos que engradecem, justamente, sua atuação.

Destacar-se em um filme protagonizado por Viola Davis é algo grandioso. Acontece que a intérprete da Mãe do Blues não precisa de muito para tomar conta de suas cenas: basta que a câmera de Wolfe passeie por suas expressões e, de vez em quando, pareça encantada com a performance da atriz. É a partir de Ma Rainey (de Davis) que A Voz Suprema do Blues ganha vida e consegue dissolver a exploração passada pela cultura negra a favor de mandantes brancos — é uma pena, portanto, que não tenham sido disponibilizadas legendas para as músicas cantadas.

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Atenção! Esta crítica contém spoilers sobre o filme!

O subtexto da necessidade de voz e espaço

Não é a primeira vez que um filme que traz uma visão de resistência parece focado nas atuações. Por um lado, é uma abordagem que cede uma força empática instantânea ao resultado. Com espaço para mostrar todo talento que lhes cabe, Boseman e Davis conseguem transformar seus personagens em ícones rapidamente. Mas, em outra perspectiva, o trabalho da direção pode parecer refém da dupla e dos diálogos.

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De todo modo, Wolfe parece estar dando voz (sem a intenção de trocadilho) à sua visão da vida de Ma Rainey sem recorrer a artifícios que não sejam aqueles de quem está vivendo as emoções. Pode ficar a impressão, nesse sentido, de que Wolfe tira de si para dar destaque a Boseman e Davis, no que é uma intenção das melhores.

Isso porque A Voz Suprema do Blues trata de poder artístico. Ao permitir que o trabalho do elenco se agigante, o diretor, ao mesmo tempo, promove uma exaltação não somente dos atores, mas de suas personagens. Dessa forma, o roteiro de Ruben Santiago-Hudson (em seu primeiro trabalho para cinema) dá as mãos à direção ao incluir monólogos poderosos a serem expressos por Levee (Boseman). O músico, que não é cantor como Ma Rainey — é trompetista —, utiliza sua voz nesses momentos com a mesma propriedade que ela a utiliza para cantar. Cria-se um laço entre os dois que vai muito além da música ou da rivalidade — o subtexto da necessidade, exatamente, de voz, de espaço, está ali, nessa condução metafórica.

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Wolfe está, literalmente, dando poder aos seus atores. Não existe invencionices técnicas em sua condução. É tudo simples e, com isso, toda suspensão de descrença recai, também, em Boseman e Davis. Esta, por exemplo, não precisa de muito tempo em cena para que sua autoridade seja sentida. É possível que somente ela consiga cravar os olhos em um homem branco na rua, em uma época tão racista quanto a retratada, sem que duvidemos que esse olhar não seria retrucado. Isso, trazendo para os dias de hoje, é só uma das provas dolorosas desse mal que permanece consumindo boa parte dos países fundados na base da subjugação racial.

Transcendência

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O controle de Wolfe é tão fundamentado nessa visão que até mesmo detalhes sutis são direcionados aos dois oponentes. Assim sendo, antes da cena mais emblemática de Boseman, o diretor faz questão de mostrar Levee ouvindo uma conversa em outra sala, silenciosamente: o que toma conta do momento é a onda de emoções que vai sequestrando o rosto do ator.

A montagem, nesse ponto, beira o experimental, assumindo um pensamento da montadora húngara Ágnes Hranitzky (de O Tango de Satã), sobre ser melhor saber quando não cortar do que quando aplicar o corte. O trabalho de edição, aqui, é de Andrew Mondshein (do último A Múmia), que, aderindo à ideia de Wolfe, espera pacientemente que os sentimentos quase esvaziem do rosto de Boseman. É um trabalho sensibilíssimo das duplas direção-atuação e direção-montagem que leva à possibilidade de que qualquer explosão na sequência abale adequadamente o espectador.

O que se segue, então, é a cena, provavelmente, mais dolorida de A Voz Suprema do Blues. A descrição de Levee sobre o estupro sofrido por sua mãe é assustadora, muito pelo seu embate contra a religiosidade de Cutler (Colman Domingo), muito pela situação que ele comenta. No meio de tudo, o personagem parece se transformar em Boseman sem deixar de ser o personagem. É algo que pode não ser perceptível se não se sabe da história do ator, mas que acaba tornando a experiência de assistir ao filme intensa e sofrida demais nesse ponto.

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A questão é que ele (Boseman) sabia que a sua vida estava sendo suprimida quando interpretou esse monólogo. Seus questionamentos, no final das contas, parecem o de alguém enfrentando a própria mortalidade. Tudo fica muito real: dor, raiva, sofrimento, sonhos sendo amassados... É tanto que, mea culpa, só consegui assistir a esse trecho em uma terceira tentativa, depois de respirar fundo e desfazer nós na garganta.

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Como dito, destacar-se dessa forma em um filme protagonizado por Viola Davis é algo grandioso. Boseman, em seu último trabalho, não precisava provar nada. Ele já se mostrara um ator muito acima da média inclusive com o seu T’Challa de Pantera Negra. O que acontece, porém, não é uma prova, mas uma transcendência, um cruzamento dos universos pessoal e artístico: uma bomba que explode em paixão pela vida e competência.

A Voz Suprema do Blues está disponível no catálogo da Netflix.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech.