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Crítica | As Viúvas: "que descolorirá"

Por| 26 de Setembro de 2019 às 21h49

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Fox Film do Brasil
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"Giro um simples compassoe num círculo eu faço o mundo"– Toquinho

Talvez seja possível enxergar As Viúvas (disponível no serviço de streaming do Telecine) por dois ângulos diferentes, praticamente opostos. Isso se dá pela maneira com que a direção de Steve McQueen (de 12 Anos de Escravidão, 2013) lida com os signos do filme e, especialmente, como ele lida com o subgênero desde a escrita do roteiro junto a Gillian Flynn (de Garota Exemplar). Há, nesse sentido, uma espécie de ressignificação das etapas de um heist filme (filme de assalto), com uma abordagem focada no drama das personagens e pouco interessada em criar tensão por meio do crime de fato.

Cuidado! Daqui em diante a crítica pode conter spoilers!

Uma nobreza inconsistente

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Dessa forma, ao mesmo tempo em que os plot twists são pouco surpreendentes (com a exceção de um que é essencialmente dramático), eles descortinam mais e mais as personalidades e as dificuldades das protagonistas – encabeçadas por Viola Davis. E é justamente o foco de McQueen e Flynn: o drama quase existencial de suas personagens, a luta para sobreviver em quatro formatos diferentes. Se Veronica (Davis) busca pela fuga de uma ameaça, Linda (Michelle Rodriguez) enxerga uma oportunidade de ceder um futuro melhor para os filhos. Alice (Elizabeth Debicki), por sua vez, parece investir em sua independência – até da própria mãe – e Belle (Cynthia Erivo), que surge para o grupo por último, ilustra bem uma fuga enfrentada diariamente por muitas mulheres, ameaçadas em seus bairros, assediadas por vozes sem (e com) rosto, correndo até um ônibus para fugir das ruas do seu próprio bairro.

Essa abordagem reparte As Viúvas. Se dá a um filme de assalto uma carga social embalada em uma forma que foge dos estigmas do subgênero, também dá ao subgênero uma camada de aparente superioridade. Esse uso da linguagem autoral de McQueen – que é de uma sensibilidade fora do comum em Shame (2011) e, especialmente, em Fome (2008) – conduz um filme tão bom quanto estranhamente pretensioso. É como uma pintura perfeccionista nos detalhes, que demonstra muita habilidade com pincéis e cores – a técnica e o requinte de uma visão –, rabiscada com a assinatura do artista em cada centímetro da tela, misturando o que é a arte com o desejo do autor de solidificar sua autoria.

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Assim, um longo diálogo onde não é possível ver os falantes, sendo possível ver somente o capô de um carro em movimento, tem um valor interpretativo enorme se for levada em conta sua semiótica em detrimento da sua relevância imediata; do mesmo modo, algumas questões que parecem pedir uma condução mais direta e mais palpável para o público – como o planejamento do assalto – tendem a ser sufocadas pelo talento de McQueen. É dessa maneira que As Viúvas acaba por ser um filme do ponto de vista social e artístico de uma grandeza de encher os olhos e, da perspectiva do seu universo próprio (tanto do filme em si quanto do subgênero), desconexo, de uma nobreza inconsistente.

Viola Davis

Por outro lado, a direção de fotografia de Sean Bobbitt (parceiro de McQueen desde o citado Fome – o primeiro longa-metragem do diretor) constrói uma atmosfera tanto de seriedade quanto de dor que ratifica as personalidades de Veronica, Linda, Alice e Belle. Enquanto elas surgem sempre pouco iluminadas após o acontecimento que as une – o que as afoga em luto e em um sentimento tão sisudo quanto melancólico –, é nos flashbacks que o contraste aparece e faz da personagem de Davis o motor sentimental das pouco mais de duas horas de duração. Iluminada de um jeito quase etéreo quando ao lado de Harry (Liam Neeson), Veronica torna-se o que existe de mais visualmente complexo em As Viúvas.

Não que suas companheiras não tenham dimensões. A questão é que o roteiro, baseado em uma minissérie para televisão criada por Lynda La Plante, pincela Linda (com sua faceta de mãe absoluta), Alice (com seu lado de filha, de predestinação e de culto ao corpo) e Belle (com sua vida na periferia em meio aos assédios diários e a vida em prol do autossustento), mas pinta Veronica com muito mais propriedade. É verdade que essa força dramática da protagonista ganha muitas camadas a partir da interpretação de Davis, que transborda sofrimento até mesmo quando McQueen evita mostrar o seu rosto. A voz de Davis pode ser tão poderosa quanto frágil, assim como suas expressões e seu gestual, que vão da mulher que sente a proximidade do marido atrás de uma porta e contém um impulso às lágrimas de dúvida e raiva dos pensamentos que dominam na sequência.

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Num pedacinho azul do papel

Assim como o trabalho de Bobbitt, a trilha sonora de Hans Zimmer (de O Rei Leão, 1994 e 2019) parte da sobriedade. Além disso, para criar caminhos que variam entre um romantismo quase que espiritual a uma dinâmica crescente de tensão, Zimmer utiliza-se de um ostinato quase que ininterrupto nos momentos mais nervosos. Fica, inclusive, interessante imaginar a funcionalidade dos planos pensados por McQueen sem a composição de Zimmer. A sensação imposta pelo trabalho do compositor parece remediar a pegada do diretor que, por mais que seja muito consciente do seu trabalho e de sua visão enquanto artista, talvez pudesse ter pensado, antes de tudo, em dar vida à arte em si para além do seu talento.

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As Viúvas, no final das contas, é um drama bem construído imageticamente e que sofre um bocado por estar preso a uma necessidade autoral que parece acima do todo. É um heist film aristocrático; é uma força enjaulada; é um sol amarelo e cinco ou seis retas formando um castelo desenhados e pintados por Leonardo da Vinci. Isso, de fato, não é ruim, mas pode ser um excesso para quem poderia sugerir uma linda gaivota a voar no céu a partir de uma gota de tinta azul acidental.

As Viúvas pode ser assistido pelos assinantes da plataforma de streaming do Telecine.