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Crítica | A Mulher na Janela é um belíssimo Frankenstein de filmes de suspense

Por| Editado por Jones Oliveira | 19 de Maio de 2021 às 09h25

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Preciso ser sincera e dizer que não tenho condições de entregar uma análise definida (ainda que pessoal) da qualidade de A Mulher na Janela. Isso acontece porque o filme nos empurra para os polêmicos limites entre plágio, referência e reciclagem natural da arte. Afinal, nada se cria, tudo se transforma.

A Mulher na Janela é um Frankenstein de filmes de suspense, sobretudo dos filmes de Alfred Hitchcock, o que até era bem óbvio na divulgação. O histórico polêmico do autor pode até nos fazer pensar em plágio, mas no que a obra da Netflix se difere dos filmes de Quentin Tarantino, por exemplo?

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A Mulher na Janela tem um elenco impressionante, um roteiro repleto de reviravoltas (plot twists) empolgantes e uma direção maravilhosa que, aliada à fotografia e à direção de arte, entrega imagens belíssimas. É daqueles filmes que você não consegue dizer que não vale a pena ver, porque você sabe que, se a pessoa gosta de suspense, ela irá se divertir assistindo ao filme. Ele empolga. Lidemos com isso.

É bastante incômodo sentir que o filme tenta impressionar com o que já vimos em Janela Indiscreta e Um Corpo Que Cai, mas não posso falar por todos nesse sentido. Eu vi alguns filmes de Hitchcock, mas outras pessoas viram todos e muitos outros suspenses que não foram identificados por mim. Por outro lado, outras pessoas nunca viram um filme de Hitchcock ou sequer ouviram falar desse diretor. A culpa é do espectador que não correu atrás de saber toda a história do cinema? Ou nós que estamos implicando demais?

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A Mulher na Janela parece demais com obras que não são tão antigas ao ponto de pouquíssimas pessoas identificarem “a original”. Parece plágio, porque aparenta ir além da referência; mas não parece plágio, porque cria algo completamente novo a partir desse patchwork de suspenses. Amar ou cancelar? Ou podemos buscar um meio-termo?

Atenção! A partir daqui a crítica pode conter spoilers.

Linha tênue

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No documentário Saída pela Loja de Presentes (2010), Banksy apresenta Mr. Brainwash, uma espécie de Andy Warhol bizarro da arte de rua. No filme, Banksy mostra como a ideia de reciclagem de artes alheias pode perder o controle nas mãos de alguém que está mais preocupado em vender arte do que em fazê-la.

Mr. Brainwash, Tarantino e A Mulher na Janela têm muito em comum. Mr. Brainwash fazia séries inteiras de obras com base em artes alheias. Tarantino faz seus filmes a partir de obras alheias. A Mulher na Janela é uma amálgama de grandes ideias de obras alheias. Por que isso soa tão incômodo? Realmente é algo antiético ou chegou a hora de admitirmos que é isto mesmo? Será que vivemos a Babilônia das referências e reciclagens da arte e só estamos nos negando a ver?

Iniciei este texto com um tremendo desgosto por A Mulher na Janela: os clássicos cults pareciam maculados nessa trama interessante que deságua no maior clichê freudiano dos filmes de serial killers. O processo de análise dessas ideias sobre referências, no entanto, mostra o quanto esse pensamento é hipócrita, sobretudo para alguém como eu, que (até então) gosta muito da filmografia de Quentin Tarantino e o defende como uma forma de pastiche.

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O desgosto por A Mulher na Janela, no fundo, não tem a ver exatamente com a mineração que o autor fez de outros filmes, mas sim com o final, que não mantém o nível de impacto dos plot twists. Quando Ethan Russell (Fred Hechinger) se revela como vilão ao estilo Os Suspeitos (1995), temos a última grande revelação do filme e, daí em diante, o discurso do personagem vai ladeira abaixo.

É como se A Mulher na Janela fosse um enorme pastiche do que há de melhor e mais popular no cinema de suspense hichcockiano (incluindo aqueles que foram influenciados pelo “mestre”), guardando para o final o que há de mais desatualizado em todos esses filmes: o psicologismo freudiano. A direção de arte chega a fornecer a prova dessa referência, colocando em destaque no canto mais estratégico da estante de livros, um exemplar que grita o sobrenome do pai da psicanálise.

Quando Ethan começa a falar sobre seu padrão de serial killer e quando entendemos como maternidade e sexualidade são entrelaçadas em um Complexo de Édipo clichê, A Mulher na Janela revela o embuste que é. Usando obras alheias como muleta, o filme é incrível, mas decepciona por não dar um passo além. Não li o livro, portanto não tenho condições de falar sobre a adaptação feita pelo roteirista Tracy Letts (Lady Bird: A Hora de Voar), mas é interessante como o melhor deste filme surge justamente do que não é literário.

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Contadores de histórias

Joe Wright, de Orgulho & Preconceito e O Destino de uma Nação, faz um trabalho de direção maravilhoso ao lado do cinefotógrafo Bruno Delbonnel (O Fabuloso Destino de Amélie Poulain) e do diretor de arte Kevin Thompson (Birdman). Os ângulos, as cores, os movimentos de câmera e o cenário formam imagens que, além de bonitas, são impactantes, tornando o ato de assistir ao filme um experiência que vale a pena em si mesma.

Somado a isso, há a atuação da maravilhosa Amy Adams, capaz de dosar muito bem as intensidades de vulnerabilidade e força da sua personagem. Gary Oldman, Julianne Moore, Jennifer Jason Leigh, Wyatt Russell, Brian Tyree Henry, Jeanine Serralles e Anthony Mackie fazem aparições pontuais, mas poderosíssimas, justificando com folga suas presenças no elenco.

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A Mulher na Janela usa recursos alheios, mas é uma história muito bem contada, do tipo que nos faz ficar sem piscar até o final — caso não estejamos ocupados demais desdenhando do filme porque ele se apropria de obras supostamente intocáveis. O filme funciona e é um entretenimento muito mais certeiro que outros suspenses que vimos surgir nos últimos meses. Não vou ousar dizer que A Mulher na Janela não vale a pena porque vampiriza outros diretores, em especial Hitchcock, cuja fama me deixa ainda menos propensa a defendê-lo.

Talvez seja melhor usar A Mulher na Janela como uma obra sumária para novos apreciadores do suspense, do que discutir sobre os limites embaçados da arte (o que não esgotaríamos aqui). O filme da Netflix traz, nas próprias imagens, diversos outros que podem garantir a diversão dos fãs de suspense, indicando que existem referências e deixando a adaptação mais sincera. A Netflix também ajudou bastante nesse sentido e teve a bondade de listar todos os filmes referenciados por A Mulher na Janela, porque é melhor assistir a um filme novo, do que ficar reclamando do caráter duvidoso de uma obra que, bem ou mal, está divulgando um bocado de títulos que raramente são lembrados:

Trocando lentes

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Deixei transparecer minha mudança de pensamento, porque acredito que funciona como um bom exemplo de algo que repito sempre: não existem filmes bons ou ruins em si, mas filmes que achamos bons ou ruins. Há uma tremenda diferença entre essas duas perspectivas e é bastante comum esquecermos disso. O que pensamos, o que vivemos, nossas memórias ou mesmo onde e como vemos um filme, enfim, tudo nos afeta como espectadores. Tudo isso se soma e funciona como uma lente, distorcendo as imagens.

Ao assistir A Mulher na Janela, fui conquistada pela estética e fiquei curiosa para saber aonde todas aquelas “cópias” estavam indo. Após a sessão, veio o desgosto por um final tão canastrão. O processo de reflexão da escrita, no entanto, me fez entender que talvez A Mulher na Janela seja uma grande declaração de amor pelo gênero, como fazem também muitos cultuados títulos do terror. Diversas trocas de lente depois, ainda podemos alimentar sentimentos conflitantes sobre A Mulher na Janela, o que significa que este é um filme que custa a esgotar as discussões que levanta. Será que isso basta?

A Mulher na Janela está disponível no catálogo da Netflix.