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Verbo e inação, complementos do mundo das TIC?

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Pixabay/Angeleses
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Inicia-se a contagem regressiva para o término de 2023, mais um ano que desaparece rapidamente sem atender às necessidades digitais mais básicas da América Latina. Como é de praxe, começou com a esperança de que as políticas públicas estivessem em conformidade com os discursos eleitorais, ou, pelo menos, com o objetivo de fazer cumprir a lei. Buscava-se deixar evidente que as telecomunicações passassem de um artigo de luxo para um direito humano ou
parte da cesta básica familiar.

Porém, com poucas exceções, o que se viu na região foram iniciativas que visavam arrecadar o máximo de dinheiro para o Estado. Dinheiro que seria utilizado, na melhor das hipóteses, para equilibrar o orçamento, minimizando os déficits. Na pior das hipóteses, seria utilizado como insumo para as campanhas eleitorais de um ou outro candidato vinculado ao atual governo. Depois das eleições, poucos se empenham em lembrar de promessas feitas.

Se, institucionalmente, os serviços de telecomunicações fossem verdadeiramente considerados essenciais para todos os cidadãos, talvez o comportamento fosse diferente. Talvez o valor arrecadado tivesse sido destinado a investimentos que visassem promover a adoção desses serviços ou ampliar a cobertura nos locais que ainda carecem de atendimento. Uma tarefa difícil em países que carecem de um programa ou projeto para promover o acesso universal à
conectividade.

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Outro desejo cuja viabilidade foi diminuindo ao longo dos meses foi o da estabilidade institucional. Mais uma vez, o sector das tecnologias de informação e comunicação (TIC) sofreu de falta de liderança discricionária, uma doença que se manifestou com dois sintomas principais. O primeiro sintoma, que já indicava a existência de perigo, mostrou as entidades responsáveis ​​pelas TIC e telecomunicações como as últimas a preencher as vagas disponíveis. Desta forma, pelo menos quatro países continuam sem ter todos os comissários que deveriam compor o seu órgão regulador funcionando. Em um deles em particular, o congresso local decide aprovar um projeto de lei que confunde torres com antenas, ignora as leis da física e presume que o único serviço digital recebido pelos usuários por redes sem fio é a telefonia móvel.

Embora o Poder Executivo continue utilizando o verbo "digitalizar" como protagonista de inúmeros discursos, as ações demonstram desinteresse pelo mundo digital. Se por um lado se promete investimento para promover carreiras técnicas em escolas e universidades, na prática observa-se a falta de conectividade nas salas de aula do país. Embora a 5G seja vista como a tecnologia que trará cirurgias remotas para o terreno, estas áreas continuam a carecer de infraestruturas civis básicas. Sim, existe uma desconexão entre o que os líderes dizem e as suas ações.

Claro que há uma explicação simples para o que aconteceu. Há uma razão pela qual conseguiram chegar ao topo: quase todos os decisores de políticas públicas possuem o dom de identificar o culpado pelas necessidades do povo. Maravilhosamente, é sempre o outro. Às vezes, a falta de banda larga se deve às políticas excessivamente liberais dos esquerdistas. Outras vezes, cedem ao tratamento excessivamente pró-mercado dos conservadores. Alguns até indicaram que a falta de banda larga na América Latina é culpa dos conquistadores espanhóis ou da oposição às reformas agrárias das administrações dos EUA ao longo da história.

O passar dos meses confirmou esta visão; somos simples vítimas das circunstâncias. Não tivemos líderes capazes de nos defender da interferência de terceiros, mas isso chegou ao fim. O presente é diferente, e devemos fazer sacrifícios pelo bem do país. Vamos integrar no discurso a importância das telecomunicações, falar do elemento neurálgico que são as TIC para impulsionar o desenvolvimento e deixá-lo por aí. De qualquer forma, a grande massa de eleitores não protestará agressivamente contra as deficiências que seus serviços de conectividade possam ter.

O segundo sintoma pode até ser mais perigoso do que culpar o outro, o ausente, contrariamente a todas as falhas do sistema. Agora identificamo-nos como sabotadores, como incompetentes, como incapazes de cumprir as promessas que foram feitas. Isto abre caminho para a continuação da demissão de funcionários que, talvez, não tenham recebido apoio
suficiente daqueles que ditam o rumo do país. Outros são demitidos porque são simples peças do jogo político e não funcionários que vão ocupar cargos em benefício do povo. Desejam-se vozes servis que permitam ao líder proferir absurdos; isso não importa se, de qualquer forma, sofremos na América Latina de uma memória quebrada que impede reconhecer nossas próprias limitações.

Limitações que nos impedem de ver como a interrupção contínua na tomada de decisão de um órgão governamental força os substitutos a atrasar tudo, antes de iniciar os trabalhos deve ser feita uma auditoria que revise todo o trabalho concluído até o momento. Principalmente se a substituição política for acompanhada de alguma recriminação pelos objetivos não alcançados. Curiosamente, cada uma das substituições é cortejada com promessas de novas conquistas que agora são viáveis, mesmo que haja menos tempo e recursos para alcançá-las. Ainda faz boa publicidade.

As próximas semanas fecharão o ciclo de 2023 para dar lugar às promessas de 2024. Mais uma vez será quase impossível romper com o ritual já estabelecido de prometer o céu e as estrelas à população, sem oferecer muitas mudanças. Aqueles poucos que aparecem nos discursos dos líderes latino-americanos provavelmente serão, na maioria das vezes, apropriações de conquistas alheias, por estratégias de marketing de empresas públicas, outras vezes por anúncios feitos por entidades acadêmicas e até lançamentos de novos serviços por cooperativas de telecomunicações.

O importante é manter viva a questão da conectividade, mas de uma forma geral, sem entrar em detalhes e fazendo com que algum charlatão se vista como Nostradamus para pregar cenários de terror caso seus desejos não sejam atendidos. É necessário ignorar o que dita o bom senso. Para que a verdade não se confunda com o bom senso e arruíne um bom dogma de campanha.

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José F. Otero é professor adjunto da Universidade de Nova York. Esta coluna é escrita em caráter pessoal.