Resgatado pela inteligência artificial?
Por José Otero |
O mundo das telecomunicações está constantemente se reinventando para avançar rapidamente em sua imobilidade. Já se foram os conceitos de criptomoedas como a mais nova forma de disrupção do mercado. As previsões apocalípticas do colapso do “modelo ultrapassado” de moedas com controle centralizado, graças à chegada do Bitcoin ou Ethereum, entre centenas de variantes, nunca se concretizaram. Pelo contrário, a aceitação do Bitcoin como moeda oficial em El Salvador e na República Centro-Africana impôs a centralização de sua gestão. Um evento que, curiosamente, não foi visto como blasfêmia pelos evangelistas das criptomoedas.
No entanto, o Bitcoin deixou um grande legado chamado Blockchain. Como um bom filho, ele superou o pai ao falar sobre suas habilidades de romper o mercado. De repente, todos os elementos de segurança digital tinham a obrigação de incorporar blockchain. O que era necessário era aproveitar a tecnologia de maneiras inesperadas. A famosa sugestão de criatividade que sempre é evocada quando o interlocutor não sabe mais com o que contribuir para o diálogo.
A festa do blockchain não acabou quando os velhos conceitos de territórios inteligentes, cidades 4.0 ou a inevitável Internet das Coisas já começavam a ressurgir. Desta forma, surgiu aquele termo universal que inclui tudo, e não é definido por nada, chamado 'transformação digital'. O relevante não é a semântica do conceito, mas entender que por meio da transformação digital a vida fica mais fácil, a economia mais produtiva e os processos mais eficientes. É um mundo onde os uns e os zeros andam como piratas irreverentes conquistando espaços e engolindo tecnologias porque todas fazem parte de seu amplo alcance.
Tudo se tornou parte integrante da transformação digital, desde criptomoedas e blockchain até NFTs e 5G. A transformação digital é esse novo prisma que nos permite observar a realidade a partir de um funil, tudo se origina e termina dentro de seu território. A transformação digital não é uma estratégia, nem um conceito que está tentando se tornar uma realidade, mas sim uma religião que, se não for aceita por hereges, deve ser imposta quer aqueles que a recebem estejam ou não preparados para seus benefícios.
Desta forma, tudo se justifica agora com a transformação digital. A 5G é apresentada como catalisadora que, ao reduzir os preços do transporte de dados em até 80%, possibilita o uso de tecnologias centradas em dados. A nova religião nos leva ao mundo do 'construa e os necessitados virão'. O problema não é se os paroquianos vêm, mas quando. A resposta a esta pergunta é que, em um ambiente onde a lógica impera, os recursos podem ser direcionados para facilitar sua chegada a curto, médio ou longo prazo, conforme a verdadeira necessidade.
No entanto, o raciocínio parece um conceito mítico em um presente viciado em novas velhas fórmulas que prometem a disrupção do mercado dentro do grande quadro acolhedor que significa a transformação digital. Diante da aparente desesperança de uma 5G que sofre para emergir diante de escassez de suprimentos, pandemias e pobreza, encontramos na inteligência artificial aquele novo artifício que nos permite sonhar.
Agora que o mundo está em nossas mãos, chegou até nós uma invenção capaz de responder às nossas perguntas escritas. A chegada iminente da singularidade já parece real, o Terminator Skynet parece real porque poucos se interessaram pelos sistemas de vigilância que existem há anos.
Novamente caímos na mesma poça. Livros sobre inteligência artificial proliferam mais rápido do que bebidas em um bar. Novos especialistas em inteligência artificial, evangelistas e visionários aparecem nos jornais. Devemos abraçar a iminente modernidade que transformará nossas vidas.
A consultoria global Gartner nos diria que tudo pode ser explicado como uma evolução natural de seu chamado Ciclo de Exagero Tecnológico, que publica desde 1995. Os detratores dessa abordagem vão divagar entre o fato de que os seres humanos são péssimos em prever o futuro; até que faça parte da nossa natureza, carregamos um otimismo que nos permite acreditar em uma solução simples para todos os nossos problemas. Não há como negar que todas as tecnologias mencionadas, usadas corretamente, podem ter um grande impacto positivo na sociedade. Mas você tem que estar ciente de seu verdadeiro alcance.
Por exemplo, a inteligência artificial está conosco há décadas. Provavelmente quem está lendo esta coluna através de um dispositivo eletrônico está interagindo com mais de um tipo de inteligência artificial. Tudo vai depender das páginas que você visita, do seu navegador e do tipo de software que você tem instalado. Se pensarmos na América Latina, poderíamos dizer que, com mais de 500 milhões de smartphones com inteligência artificial, as pessoas deveriam estar mais acostumadas a interagir com esses serviços.
Siri, Alexa, os algoritmos de aprendizagem que preveem o comportamento das pessoas para enviar publicidade em redes sociais ou páginas de compras na Internet (machine learning em inglês), são sistemas de interação diária com inteligência artificial. A vantagem da repentina divulgação e conscientização de que a inteligência artificial existe é que ela também é mais um elemento para lembrar os formuladores de políticas públicas da importância de promover a educação nas áreas de tecnologia, ciências e matemática.
A chegada da inteligência artificial escrita para as massas, depois de estar nos celulares em forma de áudio, é um marco não porque algo novo chegou, mas porque instalou a crença de que assim era. Às vezes isso basta para promover mudanças necessárias nas políticas públicas, na educação, na acessibilidade dos serviços. Caso contrário, mais cedo ou mais tarde estaremos falando sobre a exclusão digital no acesso à inteligência artificial. Embora essa lacuna já exista.