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Crítica | Zona de Combate é uma fantasia em pele de filme de guerra

Por| 19 de Janeiro de 2021 às 22h20

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Netflix
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Repito isso com frequência e, aqui, cabe a reiteração: nenhum filme é inocente. Os mais espetaculares entretenimentos, ou mesmo os mais genéricos e esquecíveis filmes de ação, adoram um maniqueísmo. A disputa muito bem delineada entre personagens bons e maus, que faz parte do gênero e também é indício do que os autores consideram como heróis e vilões. Nesse sentido, Zona de Combate tem uma discussão interessantíssima; e o roteiro de Rob Yescombe e Rowan Athale contempla de uma forma notável essa polaridade na forma de um personagem androide, chamado de “soldado de última geração” — deixando-nos sem saber se há algo de orgânico nele, como em Robocop.

A discussão sobre o gênero é válida também. Enquanto o filme é classificado na Netflix como pertencente a "Ação e aventura", "Ficção científica e fantasia" e "Cyberpunk"; as classificações mais sóbrias do IMDb colocam Zona de Combate como ação, aventura e fantasia, tirando o título de um dos nichos que pareceriam mais óbvios: o de ficção científica. Mas por que Zona de Combate não seria sci-fi?

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Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.

De boas intenções...

O roteiro de Zona de Combate é bastante interessante, sobretudo com relação aos diálogos, principais responsáveis por fazer de Leo (Anthony Mackie) um personagem que, ora parece estar do lado certo, ora parece estar do lado errado do maniqueísmo dos filmes de ação. A atuação de Mackie também é essencial nesse processo, dando ao texto a ambiguidade necessária para a revelação que só acontecerá nos momentos finais da trama.

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Leo, apesar de ser um androide, tem suas emoções bastante desenvolvidas o suficiente para nos deixar confusos e esquecermos que se trata, enfim, de uma máquina com inteligência artificial. Por outro lado, não temos acesso algum ao modo de pensar do personagem e a suas capacidades. Isso deixa muitas cenas de ação mais "humanas", ajudando-nos a desenvolver apego pelo autômato.

Uma das primeiras sequências de ação, quando o comboio encontra o caminho bloqueado por um saque liderado pelos rebeldes, chega a ser desconcertante, principalmente se tentarmos pensar mais a fundo as possibilidades de um exército robótico. Ao assistir ao filme pela primeira vez, ocorreu-me que Leo não tentou resolver logo a situação porque isso fazia parte dos seus planos de se separar do grupo. Mas, em uma segunda sessão, a história deixa mais claro que outras estratégias poderiam ser utilizadas. E, pior, parece realmente que Leo é pego de surpresa pelo exército de Victor Koval (Pilou Asbæk), de modo que o olhar atento de Harp (Damson Idris) seria algo que esperávamos muito mais do próprio protagonista.

Como o roteiro prefere deixar os intuitos de Leo nebulosos, sobra-nos detalhes menos caros à trama para refletirmos. Os robôs, chamados de Gumps, parecem absurdamente instáveis para o trabalho que fazem. Quando algum dos rebeldes atira uma pedra no Gump, e este responde com um tiro fatal, o roteiro se justifica com a inserção de um diálogo que explica os robôs como programados para isso. Mas “isso” o quê? Responder a um ataque, seria compreensível; contudo, uma máquina, que aguenta alguns tiros, responder com poder de fogo a uma pedrada, soa muito desproporcional.

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Mesmo se admitirmos que os EUA sejam os verdadeiros vilões, ainda assim, era de se esperar que um programador não fosse responder ações banais com respostas violentas — imagine que, em uma área de guerra, crianças joguem pedras nos robôs; isso poderia se tornar um verdadeiro massacre). A tensão é tão grande com os Gumps que até mesmo os soldados que estão no mesmo time os temem em campo de batalha. Ou seja, “algo errado não está certo”.

Esses detalhes acabam afetando todo o filme e nossa incapacidade de verificar até que ponto as coisas fazem sentido é que colocam Zona de Combate muito mais como uma fantasia que como uma ficção científica. Isso porque a questão das máquinas e da inteligência artificial de Leo funcionam apenas como um MacGuffin para falar, ao final, que o vilão não é nem homem, nem máquina, mas sim um Estado, mais especificamente os EUA e suas jogadas políticas que, junto à Rússia e aos problemas do fim da União Soviética, prolongaram silenciosamente a Guerra Fria ao ponto de, no início de 2020, termos vivido um período em que se falava muito de uma possível Terceira Guerra Mundial, que seria atômica. Se robôs e androide seguissem alguma lógica, o filme seria realmente uma ficção científica, ou seja, uma ficção criada a partir das possibilidades que a ciência nos dá.

A falta de argumentos lógicos para que possamos entender melhor Leo reforça a ideia de que Zona de Combate é uma farsa que quer abrir nossos olhos para outra coisa. Dizer que Zona de Combate é uma farsa, no entanto, não é uma crítica negativa. O MacGuffin é algo (ideia, personagem, objeto...) ao redor do qual parece girar a história, mas que não passa de uma estratégia de narrativa para entregar ao espectador algo completamente diferente do que poderia nos entregar a sinopse da obra.

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Zona de Combate inicialmente parece que irá focar em Leo e no fato de ele ser um androide no comando da primeira missão de um piloto de drones, com abertura de muitas discussões sobre ética de guerra, inteligência artificial e, claro, a relação entre real e virtual no personagem de Harp. Tudo isso, no entanto, é um recurso fictício que leva personagens do ponto A ao B com o intuito de nos guiar desavisadamente à discussão final, aos últimos segundos da clichê contagem regressiva de cinco minutos, em que Leo recupera o afeto dos espectadores em um momento de redenção que culmina, claro, na morte do salvador de moral duvidosa.

…o Inferno está cheio

Entender que a inserção da trama em um futuro próximo, em que alguns soldados são robôs e até mesmo androides (Leo é o único, a princípio, mas quem sabe se não existem outros?), como um MacGuffin não diminui o filme. Este é uma recurso utilizado inclusive no filme tido como consenso entre cinéfilos como um dos mais importantes da história do cinema: Cidadão Kane. Assim, o roteiro se torna o esqueleto de um filme que é puro entretenimento de ação com o intuito de nos entregar uma mensagem sobre quem os autores pensam ser os reais vilões desse problema que se tornou de interesse global.

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Nas mãos de um cineasta não tão bom, no entanto, a ideia parece simplesmente ruim. Mikael Håfström comandou outros títulos que nos dão indícios de que a sua direção não foi capaz de deixar Zona de Combate a melhor versão possível desse roteiro — que é no mínimo interessante. Håfström foi o diretor de 1408 e O Ritual: enquanto o primeiro é uma adaptação bastante esquecível de uma história de Stephen King, o segundo é um terror que desperdiça a potência de um ator como Anthony Hopkins.

As cenas de ação são confusas e, em alguns momentos, chegam a parecer amadoras; como na sequência do banco, quando Leo ordena que Harp salve os civis escondidos e o que vemos é o soldado abraçado com os reféns em um canto que os deixava ainda mais expostos do que antes. É notável o desempenho de Mackie como herói de ação, e parece ter funcionado com Idris, que também está excelente, ao dar nuances ao seu personagem. O modo como muitas das cenas são gravadas, no entanto, faz-nos duvidar da inteligência da dupla. O que certamente é um problema quando se trata de personagens que deveriam surpreender os espectadores com seus raciocínios lógicos.

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O final de Zona de Combate serve de metáfora para tudo isso. Assim como o lançamento do míssil curiosamente não causa um acidente nuclear, a direção de Håfström não é capaz de detonar a experiência do espectador, que poderá encontrar em Zona de Combate um bom entretenimento — e, de brinde, ainda levar uma sementinha de sabedoria para explorar fora do filme. Inclusive, a direção de arte nos dá alguns caminhos pelos quais podemos começar nossa pesquisa, detalhe destacado pelo vídeo Small Details You Missed In Outside the Wire, do canal oficial Netflix Film Club.

Quando Harp entra na sala de Leo, um movimento de câmera nos mostra três livros: Henrique V, de William Shakespeare; A People's History of the United States, de Howard Zinn; e Black Reconstruction in America 1860-1880, de W. E. B. Du Bois. Eis, então, uma tradução livre do que significam esses três livros no filme, para irmos muito além do MacGuffin:

Eles mal aparecem em cena, mas, uma vez que você sabe para onde vai a história de Leo, esses três livros se tornam bastante reveladores. Henrique V é o retrato de um líder que glorifica a guerra e um exame da sua relação com as pessoas que estão lutando na linha de frente. Black Reconstruction in America fundamentalmente recontextualizou o papel dos afro-estadunidenses durante a Guerra Civil e a Reconstrução dos EUA. A People's History of the United States argumenta que os EUA usam a guerra para empoderar a classe mais alta enquanto explora as pessoas abaixo deles.

Zona de Combate está no catálogo da Netflix.

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*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech.