Crítica | O Som do Silêncio é um filme de muitos contrastes
Por Sihan Felix |
O cinema é feito de muitos contrastes. Para que uma situação tenha um valor bem estabelecido durante um filme, é preciso que existam contrapontos. Heróis só são valorosos para uma narrativa quando existem vilões por exemplo. Na verdade, tudo o que observamos, na prática, é fruto de comparações, mesmo que involuntárias ou inconscientes: só temos a dimensão do que é felicidade porque já vivenciamos a tristeza. É nessa percepção que O Som do Silêncio (Sound of Metal no original) procura se segurar.
É interessante que contraponto na música acaba por ter um significado valoroso para o filme de Darius Marder (do documentário Loot, de 2008). A arte de sobrepor uma melodia à outra sem que elas se choquem, harmonizando-se entre si, tem papel fundamental aqui. Isso porque todo o filme é baseado, exatamente, em comparações. Existe, claro, a mais óbvia, que é a do desenho de som, que cena após cena dialoga entre o barulho e a quase ausência de ruídos — ausência esta que só se apresenta por completo nos últimos segundos do filme. Mas há muito mais...
Atenção! Esta crítica contém spoilers sobre o filme!
Confronto e equilíbrio
Acontece que Marder parece ter pensado em sua mise-en-scène, no filme como um todo, em um contexto de simultaneidade. Nesse sentido, ele não está disposto a causar choques ou fomentar pensamentos muito complexos. O que acontece em O Som do Silêncio é uma harmonização dos opostos. A partir dessa idealização, o filme é uma experiência sensorial muito maior do que o drama de um baterista em vias de perder a audição.
Essa opção é apresentada em cada sequência e nunca se restringe somente ao som. Se, inicialmente, Ruben (Riz Ahmed) toca com vontade a bateria em um show, pode ser observado que, entre as batidas rítmicas já existem pausas (silêncios). Além disso, o músico é mostrado em completo contraste com o ambiente. A iluminação da fotografia de Daniël Bouquet (de Elektro Mathematrix) faz com que Ruben salte aos olhos do público e se descole de tudo que há ao seu redor, que fica na escuridão.
Não demora, ainda, para que Marder organize esses opostos estéticos também na decupagem, passando de momentos em close e de planos detalhes, fechados dentro do trailer da dupla (completada por Lou — Olivia Cooke), para, em um corte da montagem de Mikkel E.G. Nielsen (de Beasts of No Nation), abrir totalmente em planos gerais que, além de revelarem a casa-móvel, mostram toda a paisagem que a cerca. Esse diálogo entre as diferenças, que é ininterrupto em O Som do Silêncio, constrói muito mais um clima de equilíbrio do que de confronto. Dessa maneira, a estabilidade mais necessária pode se perder: a força dramática — a expressividade — que acaba submersa pela concepção.
A dúvida e o peso
Ao mesmo tempo em que o drama cede espaço para uma percepção mais geral — o que não quer dizer que seja menos satisfatória —, Marder também não está interessado em diálogos extra-filme sobre surdez. Por mais que seu trabalho possa provocar sensações e pensamentos sobre a importância de nossa audição — especialmente durante o segundo ato, quando Ruben parece se estabelecer entre outros deficientes auditivos e surdos —, há sempre uma espécie de entrega maior ao formato.
As situações vividas por Ruben, assim, são objetos para causar sensações no público, objetos que são, de fato, muito bem fundamentados pelo departamento de som e que, por sua vez, encontram contraste na atuação excepcional de Ahmed. É o ator que, com seu olhar sempre muito vivo, sua entrega sentimental à ligação com Lou — que se mostra desde o início, com um café da manhã servido na cama acompanhado de muita naturalidade — e seu desejo incansável por voltar a escutar quem mais adiciona poder dramático ao filme.
Dessa forma, O Som do Silêncio chega ao fim demonstrando uma habilidade técnica e um profundo conhecimento de linguagem cinematográfica por parte do seu diretor e da equipe envolvida. Pode ser que a experiência promovida, então, seja muito mais do que válida e o filme possa ser visto já como um dos melhores do ano. Por outro lado, a dúvida sobre o valor de um experimento quando ele não provoca o suficiente e nem faz pesar a matéria-prima, que é a situação delicada de ser músico e perceber-se sem seu principal sentido, pode existir.
Fechando um ciclo
Enquanto — retornando à música propriamente dita — Beethoven, já completamente surdo (ou quase isso) entregou-se ao desespero no final de sua vida e isso se refletia em suas composições na terceira década do século XIX, Ruben chega ao final das duas horas de filme aprendendo o valor do silêncio. Pausa também é música. É verdade. Mas a pausa para sempre talvez não devesse ser encarada como poesia. O silêncio é necessário, mas qualquer imposição quanto à condição humana é dolorosa, sentida, e, finalmente, não pode ser romantizada.
É por isso que O Som do Silêncio é um filme tão significativo: ele consegue se ater à forma e só se entrega à romântica aceitação da falta de som na última cena, quando, enfim, pela primeira vez, podemos, juntos a Ruben, ver o mundo sem escutar o que quer que seja. Os graves indecifráveis da baixa audição que haviam dado lugar aos agudos tortuosos do implante (outro contraste) somem e dão espaço ao vazio. De repente, só aí, ele (Ruben) consegue comparar a experiência de ouvinte com a de não-ouvinte, fechando o ciclo dos opostos constatando a beleza do silêncio.
É romântico, é bonito e é, melhor ainda, bem construído. Mas talvez seja dissonante por embelezar uma condição imposta. Claro que é uma percepção pessoal e, por isso, a experiência como espectador de cada um de nós pode ser bem diferente. Inclusive pode ser contrária à que tive, o que faria o ciclo de contrapontos do filme se fechar por inteiro.
O Som do Silêncio está disponível no catálogo do Amazon Prime Video.
Crítica dedicada ao amigo Lucas Galvão.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech.