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Crítica | Jogador Nº 1 é aquele que salta à frente

Por| 30 de Março de 2018 às 20h04

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Divulgação/Warner Bros Pictures
Divulgação/Warner Bros Pictures

Antes de seguir adiante, cuidado! Esta crítica contém spoiler!

Talvez não seja errado constatar que Steven Spielberg tornou-se reconhecido e aclamado pelos seus filmes mais cheios de ação e aventura, como a trilogia inicial de Indiana Jones (1981, 1984, 1989), E.T. – O Extraterrestre (1982) e Jurassic Park: O Parque dos Dinossauros (1993). Até por isso, era o diretor mais festejado nas já distantes décadas de 1980 e 1990, essa última que lhe rendeu seus dois Oscars de Melhor Diretor, com A Lista de Schindler (1993) e O Resgate do Soldado Ryan (1998), e seu único Oscar de Melhor Filme, com o mesmo A Lista de Schindler.

Nesse caso, a diferença entre seus filmes mais premiados e os filmes que lhe alçaram ao panteão dos diretores que ao mesmo tempo eram respeitados e populares pode ser bem nítida. Enquanto as raízes não negam que sua pegada clássica característica é completamente compatível com toda uma liberdade criativa, essa mesma elegância parece cada vez mais desatualizada quando se trata de uma história intensamente ligada ao real. Se, para muitos, Munique (2005) é tido como o melhor filme de Spielberg no século XXI, é porque se trata do último em que a forma spielbergiana aliada ao factual funcionou sem maiores problemas de ritmo, exposições descabidas e didatismo exagerado. É, portanto, que seus melhores filmes nesse molde, A Cor Púrpura (1985), Império do Sol (1987) e o já comentado A Lista de Schindler, são de, no mínimo, vinte e cinco anos atrás.

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"Você tem que lidar com os punhos para compreender o que é real"

Jogador Nº 1, em meio ao currículo extenso de Spielberg, tem uma vida tão genuína que constrói um paralelo dos mais interessantes entre as histórias das culturas nerd e cinéfila e o trabalho do próprio diretor. Ao mesmo tempo em que Ernest Cline, escritor do livro que dá origem ao filme, nunca escondeu o quanto o mundo criado a partir do momento em que Hollywood abriu espaço para as mentes inventivas de Spielberg e sua geração-entretenimento (exponenciadas por George Lucas, Robert Zemeckis e Richard Donner) influenciou a sua escrita, Spielberg demonstra voltar a entender que seu cinema é construído através da proximidade com o público.

Não adianta, dessa maneira, tentar arquitetar uma história densa e, em meio a ela, procurar explorar elementos que causem algumas poucas e frágeis ligações com sua plateia. O cinema que corre nas veias do diretor tem a necessidade de sequestrar o espectador para dentro de si até a metade do primeiro ato, na apresentação. Não conseguindo, o risco de tudo se tornar cansativo e por à mostra uma mão pesada, que precisa do auxílio da trilha sonora para arrancar alguma lágrima deslocada (como em Cavalo de Guerra, de 2011) ou de diálogos expositivos que revelam o óbvio (como em Ponte dos Espiões, de 2015), é latente. O cinema de Spielberg é imediatista no melhor sentido da palavra. Ele quer o público tanto quanto o poder que tem de fazer o público o querer.

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É assim que, ao som de Jump, de Van Halen, Jogador Nº 1 surge em um futuro distópico, com leves semelhanças ao criado pelo sul-africano Neill Blomkamp e seu Elysium (2013). Se a música descaradamente oitentista já conseguiria fisgar quem assiste ao filme, o plano-sequência inicial que acompanha Wade (Tye Sheridan) em meio às vielas horizontais e verticais de sua comunidade reforça o que se escuta através do contraste-paralelo. Isso porque, se aquela música é sinônimo de um passado já tão distante, ela também é efusiva o suficiente para conviver em paralelo com a visualização de um lugar futurista tão inflamado quanto. E, apesar de não ser dito, vale ressaltar que a letra da música é intensamente ligada àquilo:

“Eu me levanto e nada me faz cair.Tá difícil pro teu lado, tenho visto o pior por aí.E eu sei, querida, como você se sente.Você tem que lidar com os punhos para compreender o que é real.[...]”(em tradução livre)

O melhor cinemão de 2018

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Com a música anunciando o que virá, o filme começa a ser revelado. Mas sem demora. É engraçado perceber, a esse ponto, como os diálogos e todo aquele mundo parecem ser tão orgânicos estando nas mãos de Spielberg. Assim, ao se escutar que todos nós podemos ser o que quisermos, não há como pensar em revides ou inserir pautas sociais nesse discurso. O roteiro de Zak Penn e do próprio Ernest Cline fica claro nas mãos de um mestre que está em função do seu filme e, consequentemente, consegue que tal afirmação seja relacionada àqueles personagens e suas interações com o OASIS. A nada mais.

Sendo o OASIS um jogo de realidade virtual tão profético, desses que parece ser possível de alcançarmos – talvez não a nossa geração –, a ligação torna-se ainda mais forte. Esse, provavelmente, é um dos maiores méritos de outro sopro de vida que o diretor deu quando, há dezesseis anos, lançou Minority Report – A Nova Lei. Não é difícil encontrar muito do que fora exposto naquela ficção científica funcionando hoje (como, por exemplo, computadores touchscreen e de tela transparente).

Mas não há de se enganar: Se o filme de 2002 era leve o suficiente para ser um entretenimento de ponta, também era profundo o bastante para funcionar como um alerta sobre segurança pública. Portanto, não é porque Jogador Nº 1 é o melhor cinemão de 2018 (e será duro tirá-lo do páreo), com entretenimentos e distrações a cada nova cena, que ele deixa de fora discussões necessárias. E é isso, na verdade, que o revela como um grande filme.

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Depressão, geração Atari, democratas e republicanos

Perceba, logo, que frases como “as pessoas podem ser outras na realidade” rimam intensamente com o que vivemos nas redes sociais, onde é sempre mais fácil ser a melhor das pessoas ao mesmo em tempo em que se está livre para ser a pior. Essa relação entre realidade e ficção, tão atual, é ainda mais aprofundada quando Halliday (Mark Rylance), criador do OASIS, diz a Parzival (avatar de Wade) “eu gostava quando era um jogo”.

E, de fato, o mundo polarizou-se a um ponto que talvez passe despercebido que um filme produzido pela Warner – a mesma que lança os super-heróis da DC – possa citar livremente e amigavelmente Peter Parker e Bruce Banner na voz do seu protagonista. Talvez como uma advertência, Spielberg tenha somente demonstrado a sua insatisfação com as disputas de egos que inflamam lados. Afinal, “a realidade é a única coisa que é real”.

Essa última afirmação de Halliday soa igualmente como um aviso que ultrapassa o limite do filme: enquanto se transforma a vida no digital, no online, esquece-se que o mundo lá fora é o real, o que há de mais válido. Camufla-se em avatares, em pseudônimos e em formas anônimas e, aos poucos, esquece-se o que se é ou, inclusive, entrega-se a uma insatisfação por não ser o que gostaria de ser – até atingir-se o mal do século XXI: a depressão.

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Sim. Está tudo ali em Jogador Nº 1, inclusive um embate entre democratas e republicanos (em relação à esquerda e direita dos EUA – por mais que os democratas sejam de centro-esquerda). Mas está tudo ali somente para quem quiser enxergar. Spielberg cede essa liberdade por entender que o seu filme é movido pelo entretenimento e não por discursos, que se tornariam rasos caso fossem o foco. E não é um simples entretenimento. Ele pega a geração Atari e percorre toda a mitologia (por que não?) geek de uma forma que fica impossível desvendar todos os easter eggs até mesmo assistindo mais algumas vezes. E, ao inserir tantos desses “ovos de páscoa”, demonstra entender, também, que tentar transformá-los em personagens em primeiro plano acabaria por afundar seu filme em injustiças pontuais com os menos aproveitados.

Um passo atrás para dar dois à frente

Por outro lado, vale ressaltar que alguns dos maiores expoentes da cultura nerd-cinéfila receberam um carinho a mais. Se o DeLorean da trilogia De Volta para o Futuro (de Zemeckis, de 1985, 1989 e 1990) é o carro de Parzival durante a corrida mais alucinante que pude acompanhar em um filme, a moto de Kaneda (do anime Akira, de 1988) tem um papel semelhante e ainda recebe tratamento especial. Do mesmo modo, a grandeza do Tiranossauro Rex de Jurassic Park: O Parque dos Dinossauros pode causar arrepio até pela emissão do mesmo som do filme de 1993 e o King Kong, como o maior (em tamanho ao menos) mártir da cinefilia, ganha ares de intransponível. Além, juntam-se a eles uma épica batalha entre um Mechagodzilla e um Gundam RX-72-2 e o super carismático Gigante de Ferro.

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Tudo, certamente, abalizado pela técnica clássica e, aqui, irretocável do mestre de Tubarão (1975) e Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977). Ao construir toda a resolução da citada corrida em marcha a ré e por uma passagem subterrânea, Spielberg não só aumenta a grandeza dos personagens com a câmera revelando-os ainda maiores para o público por estar posicionada abaixo (em contra-plongée), como também constrói a metáfora de que ir para trás – olhar para trás – é necessário para conseguir dar um salto para frente. Com referências aparecendo aos montes e com um mundo futurista quase que inteiramente pintado de passado, não há como duvidar de que o homem por trás de tudo sabe muito bem o que está fazendo.

Here's Johnny

Ainda sobra espaço para uma direção precisa de elenco, que apesar de protagonizado por jovens, parece capitaneado por um Mark Rylance inteiramente diferente do visto em Ponte dos Espiões, O Bom Gigante Amigo (ambos do próprio Spielberg – esse último de 2016) e Dunkirk (de Christopher Nolan, de 2017). E é, por falar em elenco, que se volta à maior discussão do filme – justamente através de outro filme: O Iluminado (de Stanley Kubrick, de 1980). Em uma das sequências mais impressionantes já realizadas para o cinema, Jogador Nº 1 tem toda a ambiência criada por Kubrick refeita em si – justamente quando o assunto era adaptações – e trazendo, ainda, o comentário legítimo de que Stephen King (autor do livro originário) não gosta do filme.

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A partir de então, Spielberg se entrega a um terror tão eficiente que, por mais que seja possível rir do grandão Aech (Lena Waithe), sente-se preso a tudo aquilo como se estivesse interligado com os personagens. Ao fim dessa sequência que talvez seja a mais importante do filme, o salto para uma dança com almas zumbis revela um processo de metamorfose de muita delicadeza: é quando Art3mis alcança o objetivo que se entende a integração entre o real e o virtual, com uma Kira (Perdita Weeks) praticamente desfeita de qualquer ar digital interagindo com o avatar daquela que é o par romântico de Parzival.

E o cinema salta à frente

Por fim, mesmo que alguns pontos pudessem ser melhor trabalhados – como a ferramenta de fazer os personagens falarem sozinhos (recurso expositivo comum em telenovelas para auxiliar um espectador que perdeu algum ponto da trama) e a repentina mudança de decisão do Sorrento (Ben Mendelsohn) ao final –, a memória que permanece é a de que Spielberg, aos 71 anos de idade, lançou o que é provavelmente o filme mais enérgico de toda a sua carreira. De tal modo, através de uma resolução tão satisfatória quanto a que ele construiu em E.T. – O Extraterrestre, cede a Wade o pulo que Halliday não conseguira.

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O cinema salta à frente com Jogador Nº 1. E o beijo, após a subida dos créditos, quem merece é o diretor que criou memórias e muitas das melhores lembranças de uma geração. Geração que, com o filme, parece reviver muito do melhor passado ao mesmo tempo em que o responsável por todo esse sentimento renasce mais jovem do que nunca.