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Crítica | Buscando... outro nível de falso documentário

Por| 24 de Setembro de 2018 às 13h43

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Sony Pictures
Sony Pictures

É interessante quando o cinema lida com a percepção de mundo do seu público (às vezes sem querer). E isso aconteceu algumas vezes durante a história. Se lá no início, no final do século XIX, uma plateia saia da frente acreditando que o trem filmado pelos irmãos Lumière sairia da tela – atropelando a todos – (em A Chegada do Trem à Estação), hoje, não é nada difícil observar elementos da atualidade construindo uma história fictícia. Enquanto A Bruxa de Blair, em 1999, jogava com o início da facilidade na captação de imagens para criar um falso documentário seminal (por mais que outros pseudodocumentários tenham existido), Atividade Paranormal, em 2007, sedimentou o subgênero. Câmeras de segurança, de smartphones, webcams... com tantas possibilidades, era um caminho óbvio para o cinema – e o terror sabe lidar com novidades como nenhum outro.

Assim foi com Amizade Desfeita em 2014. Aquele filme surgiu como se anunciasse novas possibilidades para o cinema. “Um novo gênero”, diziam os mais eufóricos. Mas ver o filme passando nas telas dos computadores dos personagens era somente uma distração para uma trama para lá de clichê: um grupo de adolescentes – alguém fez besteira – outros também – e tem um desconhecido querendo sangue.

Sem limitações de um pseudodocumentário

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Buscando..., a partir da direção de Aneesh Chaganty, já se revela diferente em sua abertura, quando constrói toda uma história familiar a partir de movimentos em telas de computadores. Detalhe: além de revelar a idade da pequena Margot ao utilizar inicialmente o papel de parede clássico do Windows XP (lançado em 2001), define a personalidade da própria Margot (Michelle La, durante a maior parte do filme) e do seu pai, David Kim (John Cho, que está excelente), apenas revelando como eles lidam com os arquivos digitais (sejam fotos, vídeos ou o que quer que seja).

Cuidado! Daqui em diante a crítica pode conter spoilers do filme.

Ao mesmo tempo em que desnuda os dois, Chaganty (que escreveu o roteiro junto a Sev Ohanian) elabora a relação da vida de ambos com Pam (Sara Sohn), mãe e esposa que é acometida por um câncer, e como todos os acontecimentos relativos à doença dela serviram como base do que se tornaram. Tudo isso nos minutos iniciais, com o poder de causar comoção, fragilizar e imediatamente criar alguma ligação empática com Margot e David. E as chances de isso acontecer são enormes, dada a competência de como é realizada essa sequência de abertura.

Lidando com questões atuais e fundamentais – como o trauma da perda; o quanto ela (a perda) pode afetar uma mente em pleno crescimento como a de uma criança ou adolescente; o quanto é necessário um adulto (ainda mais o próprio pai) presente em mais do que momentos de assistir The Voice juntos; ou a vida de um pai solteiro preso ao passado –, Buscando... encontra no formato uma maneira de jamais ser uma história de suspense comum. E o melhor é que ele (o filme) nunca é limitado pelos seus truques. Assim sendo, é provável que, ao se imaginar a produção trabalhando o mesmo roteiro de uma forma clássica (o que acontece em algumas poucas cenas – travestido de reportagem – e é quase imperceptível), as situações não percam valor.

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Cúmplices por causa de uma realidade próxima

Por outro lado, tudo é potencializado não somente pela relação óbvia de mais proximidade com a realidade causada por um falso documentário – subgênero do qual interessantemente Buscando... se desvia através da linguagem –, mas pelo grau de identificação que as ferramentas utilizadas têm. Além disso, ao incluir os espectadores ilusoriamente como cúmplices na busca por Margot – pois se vê toda a aflição de David a partir dos seus próprios olhos –, Chaganty faz com que o ato habitual de navegar em redes sociais seja mais agitado do que a maioria das perseguições de carro furiosas de filmes de ação. Ao ir à tentativa de acessar a conta do Facebook da filha desaparecida, por exemplo, a sensação pode ser a de estar abrindo o cofre de um banco. E vai além, sendo uma metáfora causada justamente pela linguagem: O que pode ser mais instigante do que tentar encontrar alguém que se ama, mas que não se sabe da vida ou da morte?

Nesse sentido de solidariedade com o personagem, é louvável o trabalho da Sony Pictures ao transpor para o português cada detalhe textual que é visto na tela, desde pastas e arquivos nos computadores às mensagens enviadas através de chats. É um trabalho que incrementa a imersão do público. Do mesmo modo, é através desses detalhes que há a possibilidade de conhecer ainda mais os personagens: Percebe-se, à vista disso, o quanto David tem dificuldade em qualquer grau de extravasamento após a morte de Pam quando, em certo ponto, ele sequer consegue enviar uma mensagem finalizada com uma exclamação, apagando e utilizando um ponto final.

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Em meio a tudo, a trilha sonora de Torin Borrowdale consegue se destacar por não optar por linhas melódicas ou por qualquer drama. Borrowdale, aliás, alimenta o suspense com extrema competência, ora passando quase despercebido, ora utilizando de um ostinato (um padrão repetitivo) de volume crescente para intensificar a busca. A edição de Nicholas D. Johnson e Will Merrick, por sua vez, não deixa o ritmo cair, acelerando-o gradativamente, o que alimenta ainda mais todas as incertezas certeiras do roteiro.

Conscientemente evoluído

Não é de se espantar, portanto, graças ao grau de comprometimento causado por Buscando..., que os alívios cômicos causem um alívio real. A comédia a esse nível baixa a guarda e faz com que a tensão seguinte seja ainda maior em perspectiva. É uma manipulação consciente e saudável proposta por Chaganty, que também está presente nos diversos closes em fotos de perfil e movimentos de câmera que induzem o olhar. Tudo é muito bem orquestrado, o que torna a estreia do diretor em longas-metragens algo que chama a atenção e o coloca em um seleto hall de melhores estreias do século XXI.

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Há um tropeço que, apesar de surgir ao final e em um ponto revelador, não macula o todo: o breve interrogatório de um policial com a detetive Vick (Debra Messing) é tão expositivo – com ele literalmente relatando tudo o que aconteceu e ela complementando – que soa como uma explicação rápida e supérflua direcionada somente ao público, sem qualquer serventia para os personagens. A partir dessa cena, pode ser que surja uma dúvida pontual: a de que talvez fosse melhor ter apenas possibilidades, encaminhamentos, as incertezas. A ansiedade, a mãe dos suspenses reais, é infelizmente assassinada aqui, quando poderia permanecer e ser uma semente para discussões pós-filme.

Mas não é uma cena que destruirá todo um trabalho praticamente impecável. É quando uma arte, como o é o cinema, assimila completamente a realidade que ela pode dar ferramentas para que ela (a arte) siga a outro nível. Buscando..., assim, diferente de Amizade Desfeita (que também foi produzido pelo cazaque Timur Bekmambetov), é um filme com vida própria. E é por ter essa vida que ele provavelmente servirá de molde para outros que poderão surgir. Assim como foi com A Bruxa de Blair ou, chegando a um ano mais recente, com Atividade Paranormal. Só que melhor ou, ao menos, conscientemente evoluído.