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Crítica | Ela, com simplicidade, procura dizer o que é o amor

Por| 27 de Março de 2020 às 12h55

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Warner Bros. Entertainment
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Acredito que uma crítica não precisa expor todo o conhecimento técnico de quem a escreve. O mais importante em um texto é que o autor tente, de algum modo, provar que aquilo que escreve tem significado para si mesmo. Se isso é realizado, a identificação de quem lê pode ser alcançada. Antes de tudo, porém, é necessário que exista uma entrega ao filme – a qualquer tipo de filme. “O mais pessoal é o mais criativo.”, já disse Bong Joon Ho ao relembrar Scorsese durante a cerimônia do Oscar 2020.

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Ela, nesse sentido, foi um filme que me tocou nas duas vezes que o assisti – e de maneira crescente. Parece ser um daqueles filmes que crescem nas revisitas. Talvez seja porque ele extrai muito do que há de bom em nós, talvez seja pela simplicidade com a qual o roteirista e diretor Spike Jonze (de Onde Vivem os Monstros, 2009) trabalha conceitos complexos... e sentimentos complexos como o amor.

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O amor, assim, pode não ser aquele primeiro sentimento de apego, de querer viver para sempre ao lado de alguém, independentemente de suas falhas, de suas ainda não descobertas incompatibilidades; o amor pode não ser aquilo que nos faz sentir um aperto tão grande por dentro que a possibilidade de algo arrebentar a boca do estômago e sair com vida parece iminente. O amor, então, pode ser a inexistência impermanente da solidão. O amor existe no plano físico portanto. O amor come, o amor bebe, o amor fala, o amor dorme – e Jonze traz o amor para o virtual com Samantha (Scarlett Johansson).

Cuidado! A crítica pode conter spoilers!

O amor sobrepondo a dor

Ela é um filme que pode fazer devanear. Por essa perspectiva, talvez seja um dos filmes mais poéticos dos últimos tempos – com ecos de O Retrato de Jennie (de William Dieterle, 1948), que talvez seja um dos mais poéticos da história. E tudo o que Jonze faz é criar um universo simbólico na busca pela comprovação de que sentimentos são reais, mas, antes, são analogias neurais ditadas por nossas relações sociais – cadenciadas, ainda, pelo nosso estado psicológico.

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Apesar disso, o que há de mais genuíno em Ela não é todo um questionamento sobre como se dão as relações contemporâneas. É a sensibilidade de Jonze e da equipe ao travestir tudo com muita simplicidade. Pode ser perceptível, portanto, como o futuro é tratado pela direção de fotografia Hoyte Van Hoytema (de Ad Astra: Rumo às Estrelas) e pelo direção de arte de Austin Gorg (de La La Land: Cantando Estações). Eles sugerem (a partir da ideia de Jonze) uma Los Angeles de cores bem definidas: explicitamente neutras.

Além disso, enquanto Theodore (Joaquin Phoenix) reprime, em sua introspectiva realidade, o que sente, o figurino de Casey Storm (também de Onde Vivem os Monstros) põe tudo para fora – na prática, virando-o pelo avesso. O vermelho de um blazer com o qual desfila pelas ruas da cidade e que contrasta com as cores frias das vestimentas dos figurantes (que, em sua maioria, são casais aparentemente felizes), faz-se presente em diversos detalhes (seja nos objetos de seu apartamento ou dissolvido em sua icônica camisa salmão – ou, ainda, na cor do sistema operacional). Dessa forma, o vermelho recorrente pode indicar uma violência psicológica que, no caso, é sobreposta por algo que se torna... amor.

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Quando os sentidos pedem piedade

Ao mesmo tempo, Phoenix é gigante em sua interpretação vulnerável. Mesmo ao sorrir e se julgar feliz, ele entende (mesmo que rejeite) sua própria incompletude. A iluminação proposta por Van Hoytema é, ainda, compassiva, a ponto de fazer com que determinada luz natural ilumine o rosto de Theodore enquanto ele sorri – construindo, em pensamento, a utopia do personagem (uma realidade fantástica). Para equilibrar a unidade, o diretor de fotografia também acrescenta sombras quando o que cabe é a amargura.

Mesmo expondo tanto em sua trama principal, Jonze deixa a história criar subtextos, exibindo relações de luto (entre Theodore e sua ex-esposa) e de amizade (junto à personagem de Amy Adams). Essa última é de uma beleza encantadora e quase tão íntima quanto a relação principal. Ver os olhos de Amy (Adams) brilhando enquanto escuta o desabafo do amigo ou observar o seu sorriso sincero ao ser abraçada por ele é quase como sentir pessoalmente aquele abraço. Sobretudo, Jonze teve tanto cuidado ao criar Amy – para, nas entrelinhas, mostrá-la adiante de qualquer realidade virtual – que seu nome é o mesmo da atriz que a interpreta, transformando-a em metalinguagem: em uma amiga mais próxima, acima da ficção.

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Ao final, o que sobra é uma ironia: somente uma máquina ou quem nunca sofreu por amor deve sair completamente ileso de uma sessão de Ela, porque o amor pode ser a inexistência impermanente da solidão, mas ele também é estar só e jamais ocar-se; pode ser o vazio da própria inexistência, porque é nesse vazio que a gente o cria. Ele (o amor) pode existir por não existir – e isso é o que há de mais sutil: porque se ele existe, nós sentimos; e se ele não existe nós sentimos o mesmo. Amor talvez seja, afinal, a insistência da razão quando os sentidos pedem piedade.