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Crítica | Bird Box: a maternidade é um rio

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Aquilo que não é visto, que permanece no desconhecido, sempre foi um ingrediente mágico para filmes de suspense e terror. As ameaças invisíveis aos olhos do espectador constroem climas de apreensão há muito tempo. Seja na água (vide Tubarão, de Steven Spielberg – 1970); seja no espaço (vide Alien, o Oitavo Passageiro, de Ridley Scott – 1979); seja na terra (como no recente Um Lugar Silencioso, de John Krasinski); o oculto é sempre um sujeito de desestabilização da rotina. Muitas vezes, a ameaça misteriosa (pelo menos aos olhos do público) cria outros hábitos para os personagens afetados, configurando um apocalipse não-físico, findando com o mundo como se conhece e dando início a uma nova era. Surgem, assim, os futuros pós-apocalípticos.

Cuidado! A partir daqui esta crítica pode conter spoilers!

O medo e a sua destruição catastrófica

Bird Box funciona em uma das linhas temporais pós-apocalípticas. Por outro lado, antes disso, chega com uma velocidade alucinante ao início do fim – pouco mais de 10 minutos – e, depois – em menos de cinco –, já enclausura desconhecidos em uma casa para que possam enfrentar o mal que chega por ali. Essa rapidez é interessante se for levada em paralelo a filmes de destruições catastróficas – aqueles que envolvem meteoros, tsunamis, erupções vulcânicas... É um fato que potencializa o mal e dá uma intensidade curiosa àquilo tudo.

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Por meio de um início verdadeiramente promissor, com a diretora Susanne Bier resgatando a mesma competência com a qual dirigiu o excepcional Em um Mundo Melhor (2010), algumas sequências podem causar certa apreensão. A cena em que uma mulher bate a cabeça contra uma janela no hospital acaba se encaixando como um choque, algo só comparado ao impacto quando do sentimento de pavor e morte de Jessica (Sarah Paulson), traduzido pela interpretação incrível de Paulson. Aliás, ela (Paulson) é uma atriz que se agiganta mesmo com pouquíssimo tempo em cena e contracenando com a estrela do filme.

O terror como escada

Então, é a partir do momento enclausurado que Bird Box começa a se entregar a uma sucessão quase inacreditável de clichês e momentos previsíveis, misturando personagens praticamente inexplorados. E não é que não houve oportunidade de tornar cada um minimamente complexo. Douglas (John Malkovich), por exemplo, até tem uma deixa para uma construção minimamente digna, para que toda a sua rabugice seja justificada, mas a exploração do fato possível é perto de nula. Assim, ele acaba se tornando somente um contraponto de Tom (Trevante Rhodes) – o sujeito bondoso, uma espécie de herói que lutou na Guerra do Iraque.

O suspense está sempre presente, mas a diretora dinamarquesa parece não saber exatamente onde está pisando. As relações humanas, a zona de conforto dentro da sua filmografia, é constantemente soterrada por diálogos expositivos, que pretendem mastigar para o espectador o que está acontecendo. “Parece que, se você olha, faz você ficar louco ou querer se machucar”, diz Tom, explicando o acontecido com um colega ainda no início do filme da forma mais didática possível.

Essas interações, ainda, são dinamizadas na tentativa de causar alguma claustrofobia no público. Planos constantemente fechados nos rostos (especialmente no de Malorie – Sandra Bullock) buscam, a todo momento, uma intensidade que não surge. Esses closes somente ressaltam a maquiagem (especialmente base e rímel) de Malorie, que permanece perto de intacta até mesmo na linha temporal que se passa cinco anos após o início de tudo.

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A verdade é que Bier demonstra se importar muito pouco com o terror mesmo que esteja dirigindo claramente um filme de gênero. Um sentimento possível, que pode nascer durante as pouco mais de duas horas, é o de que o terror está sendo posto de lado em prol de um drama sobre maternidade. Dessa forma, a própria diretora constrói Bird Box utilizando o terror somente como uma escada para atingir o seu foco (o drama), evidenciando um preconceito bem comum.

Obviamente, o drama sobre a maternidade existe e percorre todo o filme. É, sem dúvida, o que movimenta as boas e as más sequências. O problema é a realização de tudo separadamente, sem qualquer pudor: o terror utilizado como objeto de tensão (e nada mais) e o drama como o caminho para um filme ser prestigiado. Esquece-se, dessa maneira, que o terror tem poder para possuir qualquer drama e é nesse entendimento que surgem os melhores filmes do gênero. Tê-lo (o terror) como muleta não somente é um desserviço para o que vem sendo conquistado como também é covarde.

O “rio amniótico”

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De todo modo, Bird Box concentra algumas metáforas lindíssimas, por mais que sejam desenvolvidas sem muita dedicação: o medo concretizado, que paralisa e desajusta atitudes; a maternidade como espelho de um mundo novo e assustador; e, especialmente, o “rio amniótico”. Esse último, que percorre quase todo o filme em paralelo até desaguar sozinho no final, sugere uma alegoria ao parto. A previsível (no fato e no modo) morte de Tom acaba por deixar para Malorie a alternativa de, enfim, tornar-se mãe – algo que ela já era e não havia se dado conta, afinal, “mãe é quem cria”.

O rio, então, funciona como a bolsa que estoura e anuncia a chegada de um bebê. Malorie, que sequer havia batizado as crianças – chamando-as normalmente de garota e garoto –, passa por diversos obstáculos junto a eles, em provas definitivas de confiança. A questão de tatear tudo “às cegas”, sem certezas de como proceder, é simbólico de mães de “primeira viagem”, algo que Malorie acaba por ser duplamente.

E não somente: Ao chegar ao seu destino, Malorie, que já havia compreendido o amor que sente, dá luz às duas crianças. E a luz, nesse sentido, é tão literal quanto em um parto, concretizada pela direção de fotografia discreta e acertada de Salvatore Totino (de Homem Aranha: De Volta ao Lar), que revela raios de luz adentrando o ambiente. Elas (as crianças) podem tirar as vendas e receber o presente de enxergar (são até finalmente batizados com nomes reais – tão clichês quanto possível). Mas Malorie também se dá luz, porque ela renasce para a vida em uma provável nova rotina, exatamente após um apocalipse não-físico. Uma nova era está ali.

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Por quem passar pelo microuniverso do filme

Bird Box, que perto do seu final “soa” um pouco como a série pós-apocalíptica The Walking Dead – escutar um personagem chamado Rick (Pruitt Taylor Vince) falar sobre uma comunidade de sobreviventes intensifica demais essa sensação –, diz muito sobre medo e maternidade. É um filme recheado de conteúdo que, infelizmente, peca por não encontrar uma forma e, consequentemente, na linguagem.

Ao mesmo tempo em que trata de medos e do delicado processo da maternidade, Bird Box distancia-se de perigosas metáforas sobre depressão, pois esta venda os portadores para que não seja vista – porque, se vista, inicia-se a chance de ser combatida. Susanne Bier, por outro lado, mostra-se perdida, sem recursos (e até com algum preconceito) para desenvolver o terror, mas com domínio para as poucas cenas dramáticas que encontram no roteiro preguiçoso de Eric Heisserer um adversário.

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Bird Box, como praticamente qualquer outro filme, vale a conferida. Afinal de contas, a conclusão final é sempre do espectador. É uma adaptação (do livro de Josh Malerman Caixa de Pássaros – título adotado nacionalmente que a Netflix resolveu não utilizar por enquanto), mas, como tal, precisa funcionar independente da obra que o origina. E esse resultado só pode ser dado por quem passar pelo rio, pelo microuniverso do filme – que, felizmente, já são muitos.