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Crítica | Um Lugar Silencioso para os oprimidos

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Paramount Pictures
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Antes de seguir adiante, cuidado! Esta crítica contém spoiler!

“No final, não nos lembraremos das palavras dos nossos inimigos, mas do silêncio dos nossos amigos”.

Quando Martin Luther King Jr. pronunciou essa frase, o mundo era outro. Havia, inclusive, as tensões da Guerra Fria, que cessaria em 1991 com a extinção da União Soviética. Por outro lado, se o mundo era outro, a humanidade não era tão diferente. Corrida armamentista, conflitos ideológicos, tensão nuclear. Mudam-se as formas, os envolvidos, os objetos, mas a história mostra-se quase sempre cíclica. Isso acontece porque, por mais que haja uma modelação humana para o acompanhamento das inovações e evoluções, cada um está fadado a ser, justamente, humano. Os mesmos acertos, os mesmos erros, as mesmas dúvidas, tudo em outra roupagem, em outra época. A evolução perceptível acaba por ser a externa, aquilo que se vê, que se produz, aquilo que se cria.

Assim sendo, Um Lugar Silencioso acaba por ser um filme de eficiência imediata. Não por apostar no silêncio – visto que o próprio silêncio é a questão mais frágil dos acertadamente econômicos 90 minutos de duração –, mas porque, ao ser dessa escolha, acaba por dar um passo à frente evidente para o terror e por, ao mesmo tempo, significar muito nas camadas menos transparentes. Dessa forma, seu visual é tão sutil quanto sua abordagem é macroscopicamente corajosa. Percebe-se, por exemplo, o quanto o desenho de produção é modesto ao atribuir elementos comuns durante todo o filme, desde o início em uma loja de departamentos ao porão pouco iluminado. Nada está ali para causar estranheza, tudo se combina em harmonia para criar laços, sejam os familiares que reforçam o drama da família exposta, sejam por motivos extrafilme, que buscam construir algum grau de identificação do público com seus personagens.

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A coragem explícita na personificação do mal

Por outro lado, a coragem ao permitir que a primeira morte pelas criaturas seja de uma criança (Cade Woodward) faz com que os espectadores não só se aterrorizem – e até deixem soar poucas risadas nervosas – com o acontecimento e, de alguma maneira, fiquem em choque por alguns segundos após o fato, como também serve de impulso para que, sem muitas delongas, haja uma assimilação do terror. E, como se matar sem dó uma criança em seus primeiros minutos não fosse motivo suficiente para se entender o grau de personificação do mal que aquelas bestas representam, John Krasinski (que além de dirigir e atuar também corroteirizou) demonstra sem pena o grau de perversidade delas ao, sadicamente, massacrar um guaxinim com uma pisada de grafismo explícito.

Ainda, vale ressaltar novamente que nada parece supérfluo. Sabendo que um dos símbolos americanos infantis é o pensamento de querer ser astronauta, Krasinski não elimina somente uma criança, mas seus sonhos ao fazê-lo enquanto ela brinca inocentemente com um ônibus espacial. Não há espaço nesse mundo pós-apocalíptico para inocência e sonhos, tudo é vertiginosamente perturbador. E, embora um pobre guaxinim não tenha sonhos humanos, é um animal irracional repleto de inocência e, como tal, tão poupado da morte quanto uma criança em filmes que seguem padrões comedidos e tradicionais.

A economia de lágrimas e o investimento na inclusão

É igualmente intrigante perceber que Krasinski, tão presente como ator em comédias e em dramas (como O Noivo da Minha Melhor Amiga, Terra Prometida, Sob o Mesmo Céu e na versão americana da série The Office) e diretor das boas e pouco comentadas comédias dramática e romântica respectivamente Brief Interviews with Hideous Men e Família Hollar, compreende a complexidade do pavor de Um Lugar Silencioso e o quanto um drama descomedido poderia naufragar a história em banalidades e clichês. Em vista disso, ele jamais investe no desespero individual dos seus personagens. Não há tempo para lágrimas após a morte do filho, não há tempo para lágrimas após a morte do pai (Krasinski). Há tempo para sobreviver.

É nessa situação de tantas lágrimas economizadas que o suspense ganha mais e mais camadas de complexidade, não somente em seu percurso enquanto filme, mas em sua consciência inclusiva. Enquanto o diretor sabe aproveitar as suas locações, fechando os planos e progredindo através de uma claustrofobia visual quando dentro da casa – fazendo com que ela seja bem menor do que realmente é – e abrindo o visual nas cenas externas, revelando que aqueles seres podem escutar e vir de qualquer lugar e não há como vê-los antes de eles atacarem, a escalação da excelente jovem atriz Millicent Simmonds, que é surda-muda tal qual sua personagem, é das escolhas mais importantes da produção.

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Não meramente pela inclusão de fato, mas por posicionar quem é no que se quer. Isso, por si só, é de um significado enorme, porque – proporções à parte – se eram escalados atores brancos para viverem negros numa época de racismo vergonhosa da história (como no primeiro filme falado, O Cantor de Jazz) ainda hoje existe um preconceito desvirtuado para com grupos de minorias, como continua sendo a intolerância racial e a rejeição que atinge a comunidade de surdos-mudos. Além disso, a utilização fantástica da língua de sinais traduzida por legendas tão orgânicas e justificadas quanto o uso da língua é, por si só, um ato corajoso, visto que um dos motivos para o cinema americano investir tanto em dublagens e remakes é o desagrado do seu público por ter que ler legendas quando o filme está em outra língua. Aqui, no caso, não há para onde fugir.

A imperfeição de uma obra (quase) perfeita

Mas é diretamente no silêncio que reside a fragilidade de Um Lugar Silencioso. Não há como negar que a utilização do som no filme é de uma inventividade arrebatadora, especialmente ao se tratar de um terror – gênero tão afetado ultimamente por barulhos desmedidos e sustos causados pela trilha sonora (os famosos jump scares). O problema é a relativização dos ruídos e as soluções encontradas pela família Abbott (composta ainda por Emily Blunt – esposa de Krasinski também na vida real – e o talentoso ator mirim Noah Jupe) para lidar com eles.

Ficam, portanto, dúvidas pontuais quanto à credibilidade das situações: Por que as criaturas conseguem escutar ao longe praticamente quaisquer ruídos com exceção de passos na areia e, estando dentro de um local fechado como a claustrofóbica casa, não escutam a ofegante e audível respiração de Evelyn (Blunt) misturada ainda com seus murmúrios de dor e desespero? Se um barulho tão intenso quanto o de uma cachoeira faz com que outros sons menos fortes não sejam escutados pelos monstrengos, por que – e isso é de causar indignação – durante tanto tempo não foi construída uma cabana próxima à famigerada queda-d’água? Aliás, essa indignação é exponenciada ao mensurar a certeza de que um bebê vem ao mundo inevitavelmente chorando e, por mais que viesse a nascer surdo-mudo – o que é completamente imprevisível –, a possibilidade de a mãe permanecer em completo silêncio durante um parto normal é possível apenas ao se considerar uma força protetora sobre-humana, algo que os ditos murmúrios descredenciam.

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Só que essas questões, apesar de serem tão inteiramente ligadas ao argumento do filme, não descredenciam Um Lugar Silencioso como um dos melhores exemplares de terror do século XXI. Talvez possa parecer exagero, mas, por ser um gênero que rotineiramente vinha sendo soterrado por repetições e falta quase que total de inovações e sopros de vida (com exceções circunstanciais no cinema americano nos últimos anos – como Corrente do Mal, A Bruxa, The Nightmare e sobretudo Corra!), o destaque é muito mais do que merecido.

De Figuras de Cera à 4'33’’

Além do mais, a utilização de elementos tão enraizados na cultura visual do terror, como a fotografia escura e o intenso uso da cor vermelha (utilizada para indicar urgência e perigo desde versão do segmento sobre Ivan, O Terrível do filme Figuras de Cera, de 1924 – quando o cinema ainda era logicamente em preto e branco), reflete o conhecimento histórico, o respeito e a reverência da produção quanto à sua matéria-prima. O mesmo acontece com a trilha sonora de Marco Beltrami, que mistura elementos digitais muito utilizados em sci-fis com uma orquestra sonoramente reduzida, buscando um grau de solidão que é acompanhado pelo ritmo pulsante discreto que remete às batidas de um coração. O que é mais interessante sobre o trabalho de Beltrami é que ele demonstra compreender a importância do silêncio na construção da tensão e o quanto a música pode contribuir quando nem está presente em som. As pausas, nesse caso, são perturbadoras a ponto de conseguirem revelar que não há silêncio absoluto a menos que se esteja no vácuo, algo que o compositor John Cage quis demonstrar há 66 anos, em 1952, com a sua célebre composição 4’33’’.

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A violência da opressão e a necessidade de voz dos oprimidos

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Por fim, soma-se, a tanto, um sentimento familiar. Com a mãe empunhando um rifle e sua filha de uso das frequências agudas do seu aparelho auditivo – que machucam profundamente a sensível audição do ser que remete a uma fusão entre a besta de Cloverfield: Monstro, o Demogorgon de Stranger Things e um grande morcego –, não resta a sobrevivência apenas, mas o contra-ataque. Não por haver um sentimento de derrota, mas porque ouve-se, nas palavras não-ditas, aquilo que se deveria fazer. Não há, enfim, a lembrança das palavras dos inimigos, mas aquilo que os amigos, em silêncio, fizeram de bom.

Essa transfiguração das palavras de Luther King são um alento de um filme que, se está longe da carga político-social latente de Corra!, pode refletir a atualidade, tempo em que se é cercado de animais metaforicamente cegos, desafeitos de qualquer empatia – inclusive com relação a inocentes, na acepção infantil desta palavra – e que acabam por empurrar tantos oprimidos ao silêncio.

A verdade é que o silêncio somente é o caminho quando não se encontrou ainda uma solução mais efetiva. O silêncio somente é o caminho na luta contra os opressores se não se percebe o quanto já foi feito para que se tenha voz. Os opressores só vencem se os oprimidos continuarem acreditando que o caminho é o silêncio e não buscarem soluções – por mais que estas tenham que ser duras. Nesse caso, continua-se apenas uma eterna luta por sobrevivência, que pode fatalmente ser findada com o esquecimento de como é viver de verdade.