Crítica A Pequena Sereia | Uma Ariel perfeita em um filme apaixonante
Por Durval Ramos • Editado por Jones Oliveira |
A Disney há tempos vem tropeçando na estratégia de trazer seus clássicos para o live-action. Apesar de todo o potencial rentável que há na capitalização da nostalgia e da revitalização dessas histórias, o estúdio parece estar com dificuldade de dar a essas novas versões a alma que tornaram as animações eternas. Por isso mesmo, é totalmente compreensível a desconfiança com A Pequena Sereia.
Só que o filme que chega aos cinemas consegue capturar a essência do original naquilo que ele tem de mais fascinante — o lado lúdico e fantástico do conto infantil. Ao invés de se apegar a um realismo vazio que abre mão da fantasia, a nova versão se apoia na magia que é inerente a uma história de princesa e acerta o tom na hora de levar Ariel e seus amigos marinhos para o mundo de carne e osso.
Isso faz com que A Pequena Sereia seja esse grande abraço não só às memórias do público que cresceu com o desenho de 1989, mas também à mítica dos contos de fada que faz com que essa aventura seja tão poderosa para além do simples saudosismo. E faz isso ao mesmo tempo em que consegue modernizar e ampliar o clássico original — mas sem nunca dar às costas ao DNA mágico da animação.
Uma Ariel perfeita
Muito disso está na excelente escalação de Halle Bailey como Ariel. A jovem encarna perfeitamente bem a protagonista e é um acerto enorme da Disney para dar vida a uma de suas personagens mais queridas do público. E ela entrega tudo o que a gente espera da princesa e até um pouco mais.
Falar da voz da atriz é até redundante, pois ela já tinha uma carreira como cantora que justifica a voz poderosa que ela carrega para trazer algumas das canções mais famosas do repertório do Mickey de forma bem impressionante. Só que, mais do que isso, Bailey é também carismática demais. Em poucas cenas, consegue fazer o público comprar suas dores como a jovem que sonha em ir além dos limites impostos pelo seu pai e desbravar um mundo diferente do seu, além de se apaixonar com seu jeito desligado e até ingênuo de encarar as coisas.
E nada disso é apresentado de forma superficial. Enquanto a animação permite que a heroína seja construída com essa simplicidade, o live-action exige um pouco mais de complexidade e a atriz consegue ir mais a fundo e trabalhar melhor a personalidade de Ariel de modo que a gente entenda mais tanto de seus conflitos com o Rei Tritão (Javier Barden) quanto a conexão que ela faz com o Príncipe Eric (Jonah Hauer-King).
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Isso faz com que a sua Ariel não seja interessante apenas nas cenas musicais, mas em todos os momentos — como se espera de uma boa protagonista. É claro que é adorável vê-la sorrindo e brincando ao som de Aqui no Mar, mas é ainda mais apaixonante ver como ela consegue interpretar a sereia muda e ser tão expressiva apenas com o olhar e o gestual enquanto descobre o mundo dos humanos.
Encontrando um meio termo
Mas a escolha da atriz que viveria Ariel nunca foi uma preocupação de verdade. A real preocupação em torno de A Pequena Sereia estava em como a Disney iria transformar toda a ludicidade e a fantasia tão inerente à animação em algo crível no live-action.
As adaptações anteriores tropeçaram demais nesse sentido. O maior exemplo é O Rei Leão, que tirou toda a magia que tornava o clássico animado em algo fantástico para dar lugar a algo tão sem vida quanto um dos mais chatos documentários do National Geographic. E, por sorte, o Mickey Mouse ficou muito atento para não repetir o erro por aqui.
É claro que as coisas não são perfeitas, mas é muito bom ver que o filme se preocupa em trazer cor e fazer com que o fundo do mar pareça realmente vivo na tela. Isso é algo presente desde a própria Ariel, que está sempre brilhante diante das câmeras, quanto o próprio ambiente e a vida marinha em torno da protagonista.
Aliás, esse é outro ponto importante e que também reverbera o terror que foi a aventura inexpressiva de Simba. A Pequena Sereia abre mão da preocupação excessiva com o hiper-realismo e dá expressões mais humanas a seus animais. Assim, Ariel não parece uma louca conversando com um peixes que não estão nem aí para ela e você compra com facilidade as reações e “interpretações” até dos mais simples crustáceos.
Há alguns problemas, obviamente. O Linguado (Jacob Tremblay) é mesmo terrível e merece ter se tornado o meme que virou, mas o estúdio parece ciente disso e fez questão de esconder o peixe sempre que possível. Assim, as interações da jovem sereia rebelde ficam centradas mais em Sebastião (Daveed Diggs) e Sabichão (Awkwafina) — o que não poderia ser mais acertado.
Além de serem mais expressivos que um siri e uma gaivota de verdade, eles contam ainda com um trabalho de dublagem incrível que faz esses personagens crescerem a ponto de serem um dos destaques do filme. De um lado, Diggs adiciona um sotaque bem peculiar que funciona demais em seu Sebastião, ajudando a construir sua personalidade e de fazê-lo um ótimo alívio cômico. Do outro, Awkwafina segue com seu jeito bastante desbocado e quase tresloucado que funciona tão bem que a própria Disney enxergou o potencial disso e deu mais espaço para o personagem — com direito a uma música própria.
Não por acaso, a interação dessa dupla é sempre ótima e rende grandes momentos. Eles seguem sendo os mesmos personagens do desenho animado, mas construídos com charmes e carismas próprios da nova versão.
Aliás, essa busca por um meio termo entre novidade e tradição também está bem presente nas músicas. Lin-Manuel Miranda ficou responsável por compor as novas canções e é bem nítido o quanto ele teve que se equilibrar nessa balança. A nova Zum Zum Zum é estrelada por Sebastião e Sabidão é bem divertida e traz um tipo de batida mais agitada que lembra bastante o que o compositor já tinha entregue em Hamilton, por exemplo. Já Tudo Tão Novo, a nova música de Ariel cantada por Halle Bailey puxa para um ritmo mais caribenho mais próximo de Encanto — e que funciona muito bem na voz da atriz.
Ao mesmo tempo, No Fundo Dessas Águas, a canção protagonizado por Eric, é bem mais ou menos e nem parece ter sido feita por Miranda, se aproximando bem mais do estilo clássico da Disney — e, portanto, soando um tanto quanto datada.
Modernizando o clássico
Entre erros e acertos, todos os remakes em live-action da Disney tentaram atualizar e modernizar elementos de suas histórias clássicas. E, com A Pequena Sereia, isso não é diferente. E ela faz isso muito bem, já que o roteiro sabe quais tramas precisavam de um melhor desenvolvimento para fugir da simplicidade do desenho de 1989.
Sempre me incomodou a ingenuidade com que a trama entre Ariel e Eric tinha início. Era aquela coisa de história de princesa, em que eles se encantaram um pelo outro à primeira vista e todas as ações de Ariel —e suas consequências — partem dessa motivação bastante vazia. Graças aos deuses dos mares, isso não acontece por aqui.
A nova versão de A Pequena Sereia desenvolve sua história de forma bem mais aprofundada ao criar motivos verossímeis para que a heroína se encante pelo príncipe a ponto de colocar tudo a perder. Ao criar um paralelo entre eles, é muito mais fácil comprar suas escolhas e entender como as coisas chegaram ao ponto que todos conhecem.
Ao mesmo tempo, o filme também dá mais profundidade para o próprio Eric, tornando-o o personagem de verdade ao invés de ser apenas aquele rostinho bonito. Há quem possa achar essa expansão desnecessária, mas ajuda a tornar o trecho em que ele ganha mais destaque — quando Ariel perde a voz e passa a acompanhá-lo no mundo dos homens — muito mais interessante.
Além disso, há várias outras mudanças que diferem o live-action do desenho, mas de forma menos impactante do que nesses dois casos específicos. A música Beije a Moça, por exemplo, teve sua letra alterada para se tornar menos problemática, mas é algo que vai passar despercebido por muita gente. Na mesma linha, há também uma tentativa de aproximar a história do conto clássico de Hans Christian Andersen, como no fato de tornar Úrsula (Melissa McCarthy) irmã de Tritão, embora isso tenho um peso nulo dentro da trama.
Morrendo na praia
Falando em McCarthy, ela merece um tópico dedicado a ela e àquilo que é o grande ponto fraco de A Pequena Sereia — a vilã Úrsula. Tradicionalmente, a Bruxa do Mar é um dos vilões mais icônicos de toda a Disney até hoje e, por isso mesmo, havia muita expectativa sobre como o novo filme iria dar vida a essa feiticeira e todos os seus trejeitos tão apaixonantes.
E, embora a caracterização da atriz esteja impecável, ela não consegue chegar lá e nunca alcança a força e o carisma maligno que a personagem exige. Mesmo com a comparação com o desenho sendo sempre algo complicado, é impossível não ficar decepcionado com McCarthy ao ver seu trabalho pouco inspirado e até mesmo preguiçoso. Não há aquela sedução maquiavélica em sua voz e nem é possível ver sua personalidade ameaçadora no jeito caricato que a atriz encara o kraken.
A coisa é tão pobre que sua Úrsula parece uma caricatura de bruxa genérica de conto de fadas, aquela com voz arranhada e com poucas variações na fala. Tanto que até mesmo a risada icônica da vilã não impacta. E esse é um problema que se torna ainda mais evidente quando a dublagem brasileira feita por Andrezza Massei — que já fez a vilã no musical de A Pequena Sereia — entrega muito mais dessas nuances.
A música Corações Infelizes, aliás, está muito melhor em porguês do que no original. Muito mesmo.
Nadando de braçadas
Mesmo para quem não tem apego emocional e nostálgico com a animação original — o que é o meu caso —, o novo A Pequena Sereia é um acerto enorme. O live-action faz um excelente trabalho tanto de recriar momentos icônicos da animação de 1989 quanto em dar um estofo maior à produção para que ela seja mais do que apenas mais um filme de princesa.
O resultado é que temos um longa que expande a narrativa clássica e que usa o tempo a mais para contar novas histórias que fazem sentido e não apenas para mostrar novas canções ou cenas que adicionam pouco ao universo. Ariel se torna uma personagem com motivações mais consistentes e todo seu relacionamento com Eric passa a ser muito mais crível e menos idealizado e infantil — e isso torna todo o desenrolar da trama mais interessante.
Além disso, é bom ver como a Disney está atenta às críticas feitas nos live-actions anteriores em relação à qualidade da animação. E mesmo ainda tendo sequências bem escuras — é quase impossível ver o que está acontecendo no confronto final com Úrsula —, a média geral faz com que A Pequena Sereia não só seja muito colorido, mas com a vida e a magia que esse tipo de história precisa. Tanto no fundo do mar quanto nas cenas em terra, há vida pulsando na tela e é isso que faz com que a saga de Ariel funcione tão bem.
E é no meio de tudo isso que A Pequena Sereia tem seu maior acerto: a magia. Mesmo com rostos de carne e osso — e CGI —, toda a fantasia típica do conto de fadas está ali e é algo que transborda e encanta. Isso é algo vital para esse tipo de história e que é fortalecido aqui tanto por uma trilha sonora muito boa quanto por uma protagonista que é carisma puro.
Sem qualquer exagero, Halle Bailey é a melhor versão em live-action de uma princesa Disney — e faz isso com uma das personagens mais amadas pelos fãs. Com muito carisma e uma voz impressionantes, ela tem tudo para permanecer no coração do público por gerações, assim como a Ariel da animação o fez por tanto tempo.