Livros de química terão de ser atualizados após regra ter sido comprovada falsa?
Por Lillian Sibila Dala Costa • Editado por Luciana Zaramela | •

A ciência não é imutável e nem infalível — todo ano, a revisão de uma noção científica vem para provar isto. Desta vez, uma “regra” centenária foi reavaliada no campo da química: é a Regra de Bredt, que trata da ligação entre átomos de carbono e é importante na manufatura de remédios e outras substâncias por químicos e farmacêuticos do mundo todo. Agora sabemos haver exceções.
- Clique e siga o Canaltech no WhatsApp
- O que é Regra de Bredt
- Conheça esses 30 elementos químicos e suas utilidades no cotidiano
A revolução no campo, que provou o deslize que estava marcado a ferro nos livros didáticos de química desde 1924, foi capitaneada por Neil Garg, renomado professor de bioquímica e química na Universidade da Califórnia. Ele publicou sua descoberta em detalhes na revista científica Science.
O Canaltech conversou com Ubiracir Fernandes Lima, do Conselho Federal de Química (CFQ), para saber mais sobre a importância da regra, como sua "refutação" vai impactar o mundo da química e possivelmente revolucionar a farmácia.
A Regra de Bredt e sua refutação
A regra de Bredt é muito importante para o estudo de algumas moléculas, especialmente as olefinas, também chamadas de alcenos. Segundo Lima, a regra diz que ligações duplas não podem existir em certas posições estruturais de moléculas orgânicas.
Ele lembra que a geometria que envolve três substituintes (átomo que substitui um átomo) de um carbono em uma ligação SP2, ou dupla ligação, tem 120º, com os substituintes em um único plano bidimensional, ou seja, tendo uma estrutura planar, chata. As olefinas, em outras palavras, são compostas de ligações duplas entre dois átomos de carbono.
Segundo a regra, não seria possível ter uma ligação dupla de carbonos na cabeça-de-ponte, lugar onde uma molécula bicíclica se liga, ou seja, "proíbe" ligações fora das condições descritas por Lima. Isso conferia previsibilidade aos produtos de uma reação, querendo dizer que remédios e outras substâncias usando moléculas com duplos carbonos sempre tinham as mesmas composições.
De acordo com essa noção, uma ligação dupla iria torcer a molécula de maneiras muito instáveis, levando ao seu colapso rápido e inviabilizando tal organização. O problema é que, por causa da regra, cientistas basicamente não tentavam explorar olefinas “anti-Bredt” (ABO), nome das moléculas que vão contra o conceito.
A equipe de Garg, então, buscou criar as moléculas que vão contra a regra. Isso envolveu tratar as conhecidas como silil (pseudo)halidas com uma fonte de flúor, cujo resultado é, de fato, instável. Segundo Lima, os cientistas descobriram uma condição especial envolvendo duplos carbonos na cabeça-de-ponte.
O próprio químico comenta já ter utilizado a regra em pesquisas, usando também o exemplo da regra de Markovnikov: a questão não é que o produto fora da regra seja "impossível", mas, sim, com pouca estabilidade. Na pesquisa recente, o pulo do gato, justamente, foi incluir outro composto químico junto, “prendendo” as moléculas e impedindo que se desestabilizassem. Isso permitiu estudá-las e até mesmo criar novos compostos.
Os livros de química serão reescritos?
Várias notícias em veículos estrangeiros afirmaram que a descoberta levaria à "reescrita dos livros de química", mas, segundo Lima, isso não deverá acontecer — o químico comenta que, para cada regra, há uma exceção. O que os cientistas fizeram não foi, exatamente, refutar completamente a regra, mas sim mostrar que há possíveis disposições diferentes, que fogem à regra de Bredt.
A novidade é útil para campos como a indústria farmacêutica, que precisa de reações químicas que geram estruturas tridimensionais, como as ABOs, pois podem ser usadas para criar novos remédios.
Lima dá o exemplo do taxol, substância ativa do medicamento anti-câncer paclitaxel, uma das moléculas mais desafiadoras de se atingir, segundo ele, que já trabalhou com olefinas em seu mestrado. A ligação química do taxol contraria a regra de Bredt, e o achado dá mais um caminho viável para a síntese da substância.
Talvez o aspecto mais importante da pesquisa, no entanto, é a lembrança de que a ciência não deve ser tratada como um livro de leis e regras imutáveis — sempre é válido explorar e criar novas avenidas de pesquisa, provando que o impossível no passado pode ser possível hoje. Às vezes, tudo que se precisa é uma nova perspectiva e a vontade de desafiar regras arbitrárias.
Artigo atualizado em 11/11/2024 para incluir entrevista com especialista
Veja também:
Fonte: Science