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Crítica | Pelé é gravado em chapa-branca e afunda em si mesmo

Por| 24 de Fevereiro de 2021 às 21h00

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Pelé tem participação em mais de 10 produções, seja para cinema ou televisão, além de dezenas de comerciais. Há, até mesmo, um filme com Sylvester Stallone, Michael Caine e Max von Sydow, dirigido pelo lendário John Huston e lançado em 1981: Fuga para a Vitória. Ele — o rei — era uma marca, como bem ressalta o documentário da Netflix, que carregou o nome do Brasil para fora e, ainda hoje, muitos associam o país à sua figura.

É uma pena, portanto, que Pelé seja dirigido com uma aparente intenção de relativizar problemas e humanizar um personagem. Porque, na realidade, Edson Arantes do Nascimento, o homem, não é Pelé. Os diretores Ben Nicholas e David Tryhorn parecem querer aproximar ambos quando, no final das contas, eles são, na prática, opostos.

Atenção! Esta crítica pode conter spoilers sobre o filme!

Pelé e Edson

O sentido de oposição, inclusive, até tenta dar as caras. Com a inserção de trechos da ditadura e a associação de Pelé ao ex-presidente Emílio Garrastazu Médici — o terceiro do regime ditatorial (e o mais sanguinário) —, o protagonista recebe alguma complexidade. Acontece que toda força mais complexa do doc nunca é aprofundada. Aliás, qualquer passo para o obscuro é barrado por comentários que diminuem o fato a favor da existência da lenda.

Crítica | Pelé é gravado em chapa-branca e afunda em si mesmo
Abraço apertado e sorridente de Pelé em Médici. (Imagem: Reprodução/Netflix)
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E aí está o problema maior nas questões narrativas de Nicholas e Tryhorn: não adianta inserir trechos do protagonista confessando que traía (muito) a primeira esposa, Rosemeri, em tom de arrependimento e com lágrimas na sequência; não funciona associar a imagem de alguém que tinha tanto poder de entretenimento e paixão sobre um povo com depoimentos sobre as maldades de Médici e, em seguida, comparar sua postura com a de Muhammad Ali.

Crítica | Pelé é gravado em chapa-branca e afunda em si mesmo
Rosemeri e Pelé sendo entrevistados. (Imagem: Reprodução/Netflix)

Seria, sobretudo, muito mais honesto assumir que o Rei era majestade somente dentro do campo e que, fora dele, para além de ser uma marca, ele era (e é) o Edson. Este, portanto, nunca foi, ao menos pelo que se sabe publicamente, um dos melhores exemplos de homem. Afirmar que Ali (negro, islamita e com posicionamento político) atuava fora dos ringues da forma que o fazia porque não corria risco de morte talvez seja de uma desonestidade intelectual grosseira — e que pode assustar por vir de um jornalista respeitado como Juca Kfouri.

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Crítica | Pelé é gravado em chapa-branca e afunda em si mesmo
Juca Kfouri em depoimento. (Imagem: Reprodução/Netflix)

Tudo em Pelé, dessa maneira, vem seguido de justificativas sobre as más atitudes tomadas pelo Edson — ou sobre as atitudes não tomadas por completa indiferença. Nesse sentido, o filme parece um pedido de desculpas de quase duas horas amarrado por imagens restauradas e palavras saudosistas e que, infelizmente, não consegue nem mesmo engrandecer os feitos de Pelé (o jogador no caso) mais do que já se sabe serem gigantes.

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Nostalgia que afunda...

Nicholas e Tryhorn, em meio a frouxidão do conteúdo, seguem quase que uma cartilha e, por isso, nem mesmo na forma tornam o filme relevante. Além disso, os saltos temporais ora desvalorizam momentos que poderiam ser valorosos para o enriquecimento do protagonista — como quando ao pular da infância direto para a copa de 1958, aos 17 anos de Pelé —, ora desvalorizam o protagonismo de colegas, como quando, ao passar pela copa de 1962, não dão uma linha sobre a importância de Garrincha naquele evento.

Pelé, finalmente, termina como se tudo o que foi visto pudesse ter sido encontrado no YouTube, na Wikipedia e por outros meios fáceis. Quase sem novidades, é possível que a chapa-branca na qual é gravada o filme sirva como um meio nostálgico. Assim, quem viveu aquela época pode assistir e sentir saudade de um futebol que era bem diferente — mesmo que já se falasse bastante da evolução do esporte em termos defensivos e físicos na Copa de 1970.

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Pelé era, enfim, um jogador extraordinário. Não deve existir quem duvide disso. Mas o melhor da história para a maioria não era (e nem é) um anjo. Era gênio e ordinário; gênio e covarde; ou, para ser brando, gênio e ingênuo — sabendo que ingenuidade aos 30 anos de idade não é tão crível. Assim, ao tentar justificar erros e, de repente, aproximar o Rei a Edson, Pelé acaba não explorando a riqueza dos opostos e, com isso, afunda em si mesmo.

Pelé está disponível na Netflix.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech