Crítica | Host, o primeiro terror da pandemia, já nasceu como um marco histórico
Por Laísa Trojaike | 20 de Agosto de 2020 às 09h37
Vivemos algo que a humanidade não via há muito tempo, uma pandemia em escala global. O cinema, nascido por volta de 1895, nunca vivenciou uma situação como essa e, como a arte frequentemente reflete a vida, era de se esperar que um longa da pandemia surgisse logo. Claro que o primeiro filme da pandemia seria um terror, já que é o gênero mais fácil para desenvolver uma trama simples, barata e rápida, mas de qualidade. E Host consegue fazer isso.
A Bruxa de Blair é um dos, se não o maior, marcos do found footage, gênero em que a narrativa é exposta através de imagens que são exibidas (supostamente) tal como foram encontradas, como acontece também em [REC] e Atividade Paranormal. Com a popularização das videoconferências, surgiu outro subgênero ligado ao formato, o screenlife, também popularizado por outro terror, Amizade Desfeita, mas encontrando sua melhor obra no suspense Buscando… Ainda é válido citar que Host é distribuído pela Shudder, que também lançou o primeiro found footage de relevância, Holocausto Canibal (1980).
Essa discussão é importante porque entender o formato nos ajuda a ficar mais intrigados com o final de Host, que nos deixa elementos para especular muitas coisas. Ainda além, o melhor do filme é que ele não se leva tão a sério e justamente por isso cresce muito como uma obra com a qual podemos nos identificar e nos divertir, além de levar alguns habituais sustos. Vale lembrar que nenhum filme atinge a todos da mesma forma e, embora eu tenha me divertido muito com os às vezes óbvios jump scares (sustos súbitos causados por algum som repentino) e outras coisas, muitas pessoas podem não sentir o mesmo. De qualquer modo, Host já fez história ao ser o primeiro filme da quarentena e provavelmente será lembrado com muito carinho, nem que seja pelos fãs mais entusiasmados do terror.
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Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.
Inventar a roda…
… não é necessário. O primeiro filme da pandemia não é exatamente um marco por sua qualidade técnica ou por ter feito algo nunca visto. Trata-se de um filme simples, com uma fórmula já muitas vezes explorada e com diversos clichês do gênero, mas o que não torna Host apenas mais um filme é o excelente uso de recursos já desgastados pela maioria das produções. É possível dizer, na verdade, que há algo de inédito além do contexto pandêmico, que é justamente o uso desses recursos e o modo como foram combinados com o screenlife.
O baixíssimo orçamento não afeta Host, que abusa da criatividade para a criação de truques há muito aprimorados no gênero terror. Há também a ideia de fazer uma invocação via internet (que, particularmente ainda não havia visto) e que ressalta o quanto o filme não é pretensioso, já que o próprio mote soa um tanto cômico a princípio. Há um gostinho de trash também, que é, ao mesmo tempo, cômico, mas garante o respeito dos fãs mais raiz ao inserir entidades bizarras com uma maquiagem não tão incrível e mostrar um boneco queimando no lugar de um dos personagens, remetendo a clássicos como Uma Noite Alucinante: A Morte do Demônio (1981) ao preferir investir em recursos práticos e não somente digitais.
O screenlife ainda permite a exploração de um dos maiores pilares do cinema de horror, que é o não visto. Com o computador/tablet/celular em mãos, as personagens nem sempre nos mostram o que está acontecendo e, muitas vezes, ficamos vendo seus rostos ou o teto da casa, simplesmente pelo modo como estão segurando o equipamento. Assim, o formato screenlife demonstra mais uma vez os motivos pelos quais tem uma tremenda afinidade com o terror.
Hospedeiro?
Filmes como A Tortura do Medo (1960) já brincavam com espectador de filmes de terror e com a sua sede de sangue, acusando de voyeurismo aqueles que, como eu, encontram o entretenimento no terror do outro (claro que nos limites da segurança e da consciência limpa de uma obra de arte).
O formato screenlife potencializa isso, como se tivéssemos hackeado alguma das personagens e pudéssemos acompanhar a conversa delas, invadindo a sua privacidade. Há algo, no entanto, que diz respeito à nossa própria atitude de que o virtual é menos real, e talvez esse efeito voyeur não ocorra para muitos. De qualquer modo, privacidade virtual é tão importante quanto a real, porque, afinal, o virtual faz parte da nossa realidade, e Host não nos deixa esquecer disso.
A questão é que o título, Host (literalmente “hospedeiro”), tem um delicioso duplo sentido neste filme. Em um primeiro momento, o título parece dizer respeito ao conteúdo sobrenatural do filme: ao não levar a invocação a sério, uma entidade maligna acaba sendo convocada, assumindo algumas das características da brincadeira, como se fosse um hospedeiro macabro da zoeira.
Ao final do filme, no entanto, percebemos que, com todos os personagens mortos, surge um novo personagem nos créditos: quem está movendo o cursor do computador? Talvez “host” tenha muito mais a ver com a noção de informática, de que o host é a máquina/equipamento conectado à rede. Esse sutil surgimento de um novo personagem é a abertura para sequências conectadas por uma mesma ideia, que nem sequer foi desenvolvida ainda (ao menos dentro dos limites do filme): não só há espaço para uma sequência, como ainda há material para desenvolver e trazer novidades em um novo filme.
Gostando ou não, Host já é um marco. Mesmo que não assuste e não “cumpra” seu papel com alguns espectadores. Estamos diante de algo único, um filme que podemos dizer com segurança que não teria o mesmo impacto se não estivéssemos passando por uma pandemia. O isolamento popularizou as videoconferências e, agora, seus prós e contras são mais conhecidos pela maioria, tornando o screenlife um formato muito mais familiar. Além disso, alguns elementos são marcantes demais para Host passar despercebido: o cumprimento com o cotovelo, uma das personagens fugindo de casa e não esquecendo de colocar a máscara (entendendo que a COVID-19 é quase tão ameaçadora quanto a entidade invocada) e as mensagens de fique em casa. Está tudo lá. Você já se imaginou revendo esse filme no futuro? É uma belíssima cápsula temporal.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech