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Os Anéis de Poder | Episódio 6 esbarra em perigoso discurso racista; entenda

Por| Editado por Jones Oliveira | 30 de Setembro de 2022 às 19h08

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O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder parece estar fadado a viver cercado de polêmicas. Depois de ser alvo de críticas e comentários racistas por parte do público por causa da escalação de atores negros para o papel de elfos, anãos e outros povos da Terra-Média, a série do Amazon Prime Vídeo esbarrou em um problemático discurso supremacista no próprio roteiro de seu mais recente episódio.

O capítulo desta semana do seriado, Udûn, traz um diálogo bem pesado entre Galadriel (Morfydd Clark) e Adar (Joseph Mawle) após a batalha nas Terras do Sul. Não vamos entrar em spoilers sobre como a batalha acaba, mas o fato é que o líder dos orques é capturado pela elfa e um pouco mais do passado do personagem é revelado.

Contudo, o que realmente chamou a atenção não foi o passado do aparente vilão, mas o caminho que a trama seguiu para Galadriel. A protagonista da série entra em uma espiral bastante delicada com uma fala com tons bem próximos de discursos de ódio de tons racistas, xenófobos e até supremacistas.

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Atenção! O texto pode trazer algumas informações sobre parte da história de Os Anéis de Poder. Leia com cuidado.

Contextualizando o que aconteceu

A cena em questão acontece já na segunda metade do episódio, quando Galadriel vai interrogar Adar. Logo de início, ela reconhece o personagem, dizendo que ele é um “Moriondor”, um dos “Filhos das Trevas” — ou seja, um dos elfos que Melkor Morgoth retirou de Valinor e corrompeu na tentativa de brincar de deus criador. “Uma nova e torpe forma de vida”, pontua a protagonista.

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É quando descobrimos que Adar e os tais Moriondor são, na verdade, os primeiros orques — ou Uruks, como ele diz preferir ser chamado. Esse é um detalhe interessante, pois mostra que as criaturas que tanto vimos em O Senhor dos Anéis e no próprio Os Anéis de Poder são uma derivação falha desses elfos corrompidos — o que explica, por exemplo, por que eles não podem andar à luz do sol.

O personagem então conta sua história e a de seu povo. Segundo ele, após a derrota de Morgoth na Guerra da Ira, no fim da Primeira Era, Sauron reuniu os Uruk remanescentes e seguiu em busca de um novo poder. Essa tropa seguiu até o extremo-norte da Terra-Média e muitos Uruks morreram no processo. É nesse lugar que encontramos Galadriel no início da série, inclusive.

Adar conta essa história com o pesar de um pai que vê seus filhos serem sacrificados. Assim, ele revela que se rebelou contra Sauron e matou o Senhor das Trevas, garantindo a liberdade dos Uruks.

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Mais do que isso: é dito que tudo aquilo que vimos nos primeiros episódios era a luta desse povo tentando construir uma morada em que o Sol não os alcançasse. É por isso que eles tentam conquistar aquela região que só tem uns vilarejos pequenos, pois sabem que há uma chave que faria o vulcão entrar em erupção e as nuvens negras cobririam o céu — ou seja, a Mordor que a gente conhece de O Senhor dos Anéis.

Até aí, tudo bem. É uma clara tentativa de humanizar quem a gente sempre viu como vilão, o que é sempre uma iniciativa interessante para enriquecer o roteiro. O problema vem na sequência, quando Galadriel questiona quem é o senhor dos orques.

Adar: Meus filhos não têm senhor. (...) Cada um tem um nome, um coração.

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Galadriel: Um coração criado por Morgoth.

Adar: Nós somos criações do Uno, o Mestre do Fogo Secreto, como vocês. Igualmente dignos do sopro da vida e merecedores de um lar.

(Galadriel dá um risinho de deboche.)

Adar: Em breve, esta terra será nossa e vocês vão entender.

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Galadriel: Não. Sua raça foi um erro. Feita por escárnio. Mesmo que eu leve toda esta Era, juro erradicar todos vocês. Você, contudo, será mantido vivo para que um dia, antes que eu enfie a adaga em seu coração envenenado, eu possa sussurrar em sua orelha pontuda que toda sua prole morreu e que a praga da sua raça termine junto com você.

Diante dessa fala pesada e até ofensiva, o próprio Adar pontua que, ao que parece, ele não é o único elfo vivo que foi transformado pelas trevas. Irritada, Galadriel faz novas ameaças e termina chamando o oponente mais uma vez de orque, ao passo que ele a corrige, dizendo que o certo é Uruk.

Por que isso tudo é problemático?

O modo como toda essa cena foi conduzida é problemática em tantos níveis que é difícil até saber por onde começar. Mas, de maneira bem sucinta, a fala de Galadriel — a heroína e protagonista que dá rosto à maior série do Amazon Prime Video — é extremamente carregada de um tom racista e xenófobo, para não dizer supremacista.

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Em seu ataque a Adar, ela deixa claro que vê esse outro povo como algo menor. Ela usa palavras como “erro”, “deturpados” e “forma de vida torpe” para se referir aos Uruks. Mais do que isso, ela fala em um extermínio da “praga” que é aquela raça.

E qual é o problema nisso se estamos falando de a heroína eliminar os vilões? Afinal, a cultura pop não é basicamente composta por história de heróis extirpando o mal e salvando o mundo?

De fato, a gente já viu inúmeras tramas que seguem essa mesma fórmula e isso nunca foi uma questão. Os próprios orques eram uma ótima representação desse mal: eram monstros horrendos e bestiais que caminham pela noite apenas para matar e destruir — o arquétipo clássico do vilão.

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O ponto é que, nessa representação, nunca houve uma tentativa de humanizá-los. Eles eram pura e simples a ideia do mal enquanto algo feio, brutal e violento. E por mais que haja correntes que questionam o modo como essa imagem é construída — a apresentação dos orques tribais e bárbaros em contraste com os elfos belos e civilizados tem um pé na visão da África como selvagem e da Europa como avançada —, é algo que sempre funcionou muito bem no imaginário coletivo.

Só que, quando Os Anéis de Poder humaniza a questão e trata Adar e os Uruk como refugiados de guerra e dá motivações humanas para suas ações, a coisa muda drasticamente de figura. Isso porque eles deixam de representar esse mal e viram outra coisa muito mais palpável e objetiva. No fim, eles se tornam estrangeiros.

Quando o personagem de Joseph Mawle explica que, depois de perderem a guerra e serem escravizados por Sauron, os Uruk querem apenas um lugar para morar. O modo como eles tentam fazer isso é questionável? Com toda certeza, mas não há como não fazer o paralelo entre o que a fantasia apresenta o que há no mundo real.

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Aliás, um bom exercício para entender toda essa problemática é tirar a fantasia da equação e pensar em exemplos mais concretos. A crise de refugiados que vimos na Europa nos últimos anos espelha muito bem essa questão, pois eram estrangeiros que chegavam ao continente e eram rechaçados e vistos como uma ameaça — e não foram poucos exemplos de movimentos extremistas que vieram com discursos muito parecidos com os de Galadriel.

Mais do que isso, essa ideia de “raça deturpada”, “praga” e “abominações” é algo muito comum de ouvir entre grupos supremacistas, seja em termos raciais ou mesmo étnicos. São maneiras de você desumanizar o outro, transformando-os nesse monstro que vem de fora para invadir, destruir e matar — tal qual um orque.

Caindo no velho exemplo: essa desumanização do outro e a ideia de exterminar os frutos dessa “deturpação” do elfo puro não são muito distantes do que o nazismo pregava em relação a judeus, ciganos e negros. Por isso mesmo, ver esse tipo de coisa sair da boca da heroína de Os Anéis de Poder é algo que causa muito desconforto.

Derrapada infeliz

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O caminho tomado pelo roteiro de Os Anéis de Poder é tão equivocado que não há maneira de justificá-lo. Se a ideia era humanizar os vilões para tornar a trama mais complexa e interessante, o discurso de Galadriel erra demais o tom. Ela realmente trata os Uruks como algo inferior e os trata com escárnio.

Isso fica bem claro quando ela chama Adar e seus filhos de “orques” e ele a corrige: “Uruk. Nós preferimos Uruk”. Mesmo assim, ela volta a atacá-lo e termina a cena o chamando de orque mais uma vez. Bem, é fácil fazer um paralelo com isso envolvendo qualquer termo preconceituoso. Errar uma vez indica desconhecimento. Errar uma segunda, depois de ser corrigido, é provocação.

E não há como dizer que a ideia é mostrar Galadriel errada para, ao longo da temporada, ela evoluir como personagem. Primeiro porque já estamos na reta final, faltando apenas mais três episódios, e não haveria tempo para esse plot ser desenvolvido de uma forma minimamente convincente.

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Além disso, a gente sabe como essa história termina. Os Uruks vão continuar sendo vilões e os elfos, mocinhos. Assim, é difícil acreditar nesse arco de transformação em que a protagonista vai virar amiga dos Uruk e que todos vão viver em paz na Terra-Média.

E tudo isso vem de encontro a um discurso racista que sempre foi apontado no mundo de Tolkien em relação aos elfos. Como dito, essa questão da raça superior de lindos cabelos dourados que é a preferida dos deuses enquanto os demais povos são inferiores e falhos é algo que muita gente apontou ao longo do tempo e que ficou bem evidente em Os Anéis de Poder, que nunca escondeu o quanto os elfos eram detestáveis.

Só que aquilo que poderia ser uma crítica à própria obra original parece ter se perdido em um episódio que errou a mão no tom de forma colossal. Ainda há tempo na temporada para justificar esse momento, mas é difícil encontrar uma solução que justifique o que foi aquele diálogo como um todo.

Para fechar a questão

Por fim, antes que venham me dizer que estou defendendo boneco de ficção ou problematizando coisa que não existe, vale destacar uma coisa: o ponto aqui não é defender a honra desse ou daquele personagem. A questão é o discurso que Os Anéis de Poder adota e que vai ao encontro de todos os comentários racistas que antecederam a própria estreia.

Quando a gente viu os vários ataques feitos contra o elenco, o tom dos haters não era muito diferente daquele que o próprio roteiro dá a Galadriel: o de não considerar o outro digno de estar ali.

Ok, estamos falando de um boneco de ficção que foi criado para ser vilão, mas a partir do momento em que ele é humanizado e a protagonista adota uma fala genuinamente supremacista e de extermínio, as barreiras de fantasia e ficção passam a se confundir. E ver um herói falando esse tipo de coisa sem uma contraposição é perigoso demais — para não dizer ofensivo.

Assim, quando Galadriel fala em raça inferior, impuros e pragas sem que haja qualquer tipo de confronto contundente, a fala se torna reforço àquilo que a própria série e seu elenco sofreram. Quando a heroína passa a repetir a fala de vilões da vida real, é porque as coisas fugiram completamente do controle.

O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder está disponível no Amazon Prime Video