Round 6: O Desafio | Reality da Netflix é espetáculo que esvazia obra original
Por Paulinha Alves • Editado por Durval Ramos | •
Round 6: O Desafio, novo reality show da Netflix inspirado na série de mesmo nome, teve seus cinco primeiros episódios lançados nesta quarta-feira (22). Bastante comentado desde seu anúncio, especialmente pelo valor do prêmio de US$ 4,56 milhões (aproximadamente R$ 21 milhões), o show também chamou atenção pelo seu formato contraditório, que promove e incentiva algumas das principais críticas sociais feitas pela série sul-coreana.
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A competição da Netflix tem o maior prêmio já registrado na história dos reality shows, o que já dá uma amostra do quão acirrada promete ser a disputa. Soma-se a isso o fato dos participantes estarem ficando conhecidos mundo afora e, a julgar pela reação que têm a cada nova prova e local re(conhecido), serem muito fãs da série original. Uma soma de fatores que deixa claro, logo de início, que ninguém está ali para brincadeira.
A disputa começa com 456 participantes, que são confinados em um local sem acesso ao mundo exterior, com restrições de comida e tarefas a cumprir. Ao longo do programa, eles são testados em provas físicas e mentais, além de também encararem desafios sociais extras em que têm a chance de eliminar ou favorecer outro participante.
Para cada jogador eliminado, seja porque não cumpriu uma prova ou porque foi escolhido para dar adeus à competição, são somados mais US$ 10 mil ao prêmio. Dessa maneira, ao final do game, o vencedor da disputa terá acumulado os US$ 4,56 milhões prometidos — valor resultante da eliminação de todos os seus rivais.
Isso significa que até mais importante do que conseguir superar os desafios é eliminar outro concorrente, já que assim o participante fica mais próximo do prêmio e engorda o valor final. Uma missão nada fácil, considerando que, além de pôr em prova suas capacidades físicas e mentais, cada pessoa também é julgada socialmente, seja pela sua personalidade ou pelo estereótipo ao qual ela foi associada.
Vamos refrescar a memória
Para quem não assistiu ou nunca ouviu falar de Round 6, o programa chegou ao catálogo da Netflix em 2021. Em sua primeira temporada, composta por nove episódios, a série mostra um grupo de pessoas desesperadas por dinheiro, que são convocadas para uma competição onde podem faturar alto e resolver seus problemas financeiros de uma vez por todas.
Embora desconheçam inteiramente as regras do game, elas topam participar da disputa, só descobrindo no local que o desafio coloca em jogo sua própria existência. Segundo as regras, apenas o grande vencedor da competição leva o valor milionário para casa, enquanto todos os outros competidores pagam com a vida pelas suas eliminações.
Para além de todo o drama e suspense retratados na série, o show utiliza essa sangrenta competição para discutir uma série de críticas sociais. Desde como o sistema capitalista e a desigualdade social levam uma pessoa a se sujeitar a uma situação como essa, até questões morais, que fazem sobressair o individualismo e a falta de empatia de alguns quando o assunto é dinheiro. Basta ver a dinâmica do valor que aumenta a cada nova morte, que é uma alegoria bastante clara para o "preço" de cada vida ali em jogo.
Embora, é claro, tudo aqui não passe de ficção e a iminência da morte seja determinante para o comprometimento com as provas, o lado humano (ou melhor dizendo, desumano) dos personagens é o que acaba sobressaindo. Afinal, trapaças, mentiras, distorções e roubos não só surgem em uma competição como essa, mas são incentivadas — mesmo que vidas não estejam em perigo. Fazendo um paralelo com o mundo real, é impossível não nos perguntarmos “até onde uma pessoa pode ir por dinheiro?”.
Algumas bizarrices de Round 6: O Desafio
Já no primeiro episódio do reality show da Netflix, é curioso perceber como são exatamente as críticas feitas pela série que ganham destaque na narrativa.
Além de ficar evidente o quanto o valor é significativo para praticamente todos os participantes — o que os faz chorar, se descabelar, tremer e até quase vomitar nas provas —, discursos como “para mim as pessoas são apenas dinheiro” e “no fim do dia, só os fortes sobrevivem” permeiam todo o programa.
Já de cara, é possível ver alianças sendo formadas pelos “fortões” do grupo e declarações nada humildes sobre si e sobre os outros concorrentes sendo feitas. Afinal, em um programa tão “selvagem”, as piores características do ser humano parecem sobressair e uma série de preconceitos, sejam eles relacionados à idade, aparência ou intelecto, vêm à tona.
E é aí que mora toda a contradição do reality. Ele recria muito bem essa dinâmica interna que é retratada no seriado, mas abandona completamente o tom crítico que a narrativa apresenta, se apegando apenas ao espetáculo. De Round 6, ele empresa apenas o nome e as imagens, abrindo mão daquilo que fez a série se tornar o sucesso que foi em todo o mundo. Os questionamentos sobre a sociedade que permite a criação desse mar de desesperados em busca das soluções mais insanas somem em meio a recriações engraçadinhas de jogos conhecidos, assim como a ideia de que a vida dos mais pobres tem um preço se transformar em algo a ser almejado e não questionado.
Na prática, o que O Desafio faz é nos transformar, o público, naquelas mesmas figuras mascaradas que aparecem na trama coreana. Aqueles misteriosos mascarados que assistem ao desespero dos participantes como um espetáculo sádico, mas distantes o suficiente para não sujarem as mãos e não serem tocados pelo absurdo daquilo à sua frente.
Não bastasse tudo isso, Round 6: O Desafio ainda dá espaço para certas cenas e situações que, no mínimo, são esteticamente questionáveis. A primeira prova do programa — o famoso desafio da “Batatinha, 1, 2, 3”, em que uma boneca com sensor de movimento elimina os participantes que não “congelaram” há tempo — mostra como será feita a eliminação dos candidatos ao prêmio.
Ao se movimentarem na hora errada, eles são acertados por um jato de tinta, que confirma sua eliminação. O problema é o que vem depois, quando após serem atingidos, os participantes precisam “despencar” no chão como se tivessem sido alvejados por balas.
Isso sem falar de algumas situações meio absurdas que vemos no show, como quando os participantes chegam nas provas ou são apresentados ao seu dormitório e explodem em gritos de alegria e exclamações como “agora sim o jogo começou”. Os mesmos lugares em que, na série da Netflix, vemos um banho de sangue acontecendo.
As denúncias feitas ao programa
Embora por si só o formato do show já seja um poço de controvérsias, vale lembrar que o que estamos vendo é ainda a parte editada e finalizada da gravação. O que torna tudo ainda mais preocupante, já que a produção esteve envolta em polêmicas desde antes de sua estreia.
Em fevereiro deste ano, quatro participantes do reality show deram depoimentos à revista Rolling Stone denunciando o programa por suas condições cruéis. De acordo com eles, o tratamento dado aos concorrentes foi desumano e, só no primeiro desafio, dez pessoas precisaram receber atendimento médico após terem sido expostas a temperaturas baixíssimas.
A situação, embora tenha repercutido negativamente na imprensa, não impediu que a produção continuasse a ser uma das mais aguardadas do ano e que a Netflix continuasse com uma divulgação pesada sobre o programa.
Agora, com sua estreia, fica ainda mais evidente que Round 6: O Desafio é uma grande paródia absurda da série original que parece não ter entendido a mensagem existente. Na contramão de tudo que ela faz refletir, a competição da Netflix chega a ser nonsense e, diria até, moralmente equivocada. Ao tentar recriar Round 6, o reality nos transforma em seus vilões.