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PL 399/15 | Tudo o que sabemos sobre o uso da cannabis medicinal

Por| Editado por Luciana Zaramela | 14 de Junho de 2021 às 20h30

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Ckstockphoto/Envato Elements
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Na semana passada, uma comissão especial da Câmara dos Deputados que analisou o Projeto de Lei 399/15 aprovou o texto-base de proposta favorável à legalização do cultivo da cannabis para fins medicinais no Brasil. A ideia é que o plantio da Cannabis sativa seja regularizado também para fins veterinários, científicos e industriais.

Antes de uma eventual legalização do plantio, o PL tem um longo caminho para percorrer, como votação no plenário da Câmara e análise pelo Senado, além de sanção do Presidente da República. No entanto, a discussão sobre os efeitos medicinais da cannabis ganha cada vez mais espaço na comunidade científica e os benefícios são estudados para inúmeras doenças, como a epilepsia. Inclusive, alguns produtos já são regularizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)

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Para entender sobre os potenciais benefícios da cannabis medicinal e o efeito de suas substâncias — os canabinoides — no organismo humano, o Canaltech acompanhou a primeira edição do Cannabis Affair, um evento digital voltado para a discussão das suas aplicações na sociedade.

Primeiros registros do uso da cannabis para a saúde

“É uma planta que foi cultivada, nos últimos seis milênios, em torno do Himalaia [na Ásia], por ancestrais que foram selecionando variedades específicas para determinados usos, ligados não só à vida cotidiana, mas à medicina", afirma o neurocientista e vice-diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Sidarta Ribeiro.

Entre os primeiros registros do uso da cannabis para o alívio de uma condição clínica, está o Papiro Ebers, no qual a planta é indicada para o tratamento de uma inflamação. O texto é considerado um dos tratados médicos mais antigos que se tem conhecimento, escrito no Egito Antigo, em 1550 a.C. Desde então, a ciência evoluiu muito na compreensão de suas aplicabilidades.

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Na história recente da ciência, há dois momentos importantes para o estudo da cannabis: em 1964, a descoberta dos efeitos psicoativos do Δ9-THC, também conhecido como tetraidrocanabinol, e o isolamento dessa molécula; e, no final dos anos 1980, com a descoberta dos endocanabinoides, ou seja, dos canabinoides que estão dentro do próprio cérebro. “É um novo ramo da biologia se abrindo com a descoberta que nós temos, dentro do nosso próprio corpo, moléculas semelhantes àquelas contidas na maconha”, ilustra o neurocientista Ribeiro.   

Afinal, o que é o sistema endocanabinoide?

O sistema endocanabinoide é composto por uma rede de receptores espalhados pelo corpo, especialmente voltados à produção de substâncias que também são encontradas na cannabis — ou seja, os canabinoides. De forma geral, o sistema endocanabinoide é descrito "com mensageiros, receptores e enzimas de síntese e degradação e transportadores que atuam em diferentes tecidos, órgãos e sistemas do nosso organismo", explica Renato Filev, doutor em neurociência e coordenador científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD).

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Se fosse resumida, a atividade desse sistema é necessária para que uma pessoa possa "relaxar, comer, dormir e esquecer", comenta o especialista Filev sobre o sistema regulador fisiológico da homeostase. Para muitos, pode parecer curioso, mesmo que uma pessoa que nunca tenha tido contato algum com a planta, tenha e produza substâncias presentes na cannabis de forma endógena e natural, nos sistemas nervoso e imunológico, e que são essenciais para um funcionamento harmonioso da fisiologia. 

Como todos os animais, a espécie humana tem os receptores CB1 e CB2, ou seja, proteínas que reconhecem os canabinoides no corpo, sejam eles do próprio organismo ou fitocanabinoides (aqueles contidos na planta, por exemplo). Esses receptores estão presentes no corpo todo, no entanto, o CB1 é encontrado, sobretudo, no sistema nervoso. Já o CB2, por sua vez, está no sistema imune. Ambos podem ser alvo de tratamentos famacológicos.

Ao ingerir um produto derivado da cannabis, o paciente pode ativar esses receptores e, dependendo da prescrição e da orientação do seu médico, consegue deixar o seu sistema endocanabinoide equilibrado, a ponto de conseguir resultados positivos para algumas condições clínicas. Hoje, são conhecidos 115 canabinoides presentes na cannabis, o que pode representar centenas de possibilidades de tratamento. No entanto, a maioria das pesquisas foca no uso de apenas dois.

Principais canabinoides: THC e CBD

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Ambos encontrados na cannabis, tanto o THC quanto o canabidiol (CBD) são substâncias quase idênticas visualmente e têm praticamente a mesma fórmula química. Como é possível observar na imagem acima, a única diferença é a presença de uma ligação de hirdogênio a mais no CBD. No entanto, essa divergência a torna mais rígida e a faz ter efeitos, no organismo, quase opostos ao do tetraidrocanabinol. 

"O THC tende a tornar as pessoas mais agitadas, a excitar a imaginação, enquanto o CBD tende a acalmar a pessoa, é um ansiolítico poderoso", explica o neurologista Ribeiro. “Na prática, um antagoniza o efeito do outro. Quando se misturam na planta, um tempera o efeito do outro e juntos acabam tendo mais efeitos terapêuticos do que separados", completa. Nessa relação, dependo da variedade da cannabis, um canabinoide pode se encontrar mais concentrado do que o outro.

No entanto, também podem ser usados como princípios ativos isolados em uma medicação, por exemplo. Isso porque o uso dos canabinoides depende, exclusivamente, do objetivo que se quer alcançar e de qual forma ele vai ser instigado pelo organismo.

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Em quais doenças a cannabis mira enquanto remédio?

De modo geral, a cannabis pode ser uma aliada no tratamento de doenças neurológicas, onde há alguma inadequação de sincronização neuronal. "Os canabinoides podem ser muito importantes para atenuar os sintomas causados pelo excesso, dessincronização ou sincronização inadequada", explica Ribeiro, como podemos observar a seguir:

  • Quando a sincronização dos neurônios é excessiva, como na epilepsia;
  • Quando a sincronização dos neurônios é disfuncional, como no caso do Mal de Parkinson;
  • Quando a sincronização leva a espasmos, como em casos de esclerose múltipla;
  • Quando se gera dores crônicas e neuropáticas, como na fibromialgia.

“No caso das epilepsias, os remédios tradicionais baixam a atividade neuronal para conter a epilepsia. Isso leva a um estado de torpor e a pessoa fica impedida de ter aprendizado e comportamentos normais. Enquanto que no caso da dessincronização induzida pelos canabinoides, não há uma redução da atividade neuronal. O comportamento normal é possível e apenas os momentos de excesso de sincronização que são contidos", ilustra o neurocientista sobre os benefícios do potencial tratamento. 

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Uma questão bastante discutida é se o uso do THC pode propiciar surtos psicóticos, o que poderia impedir o uso de extratos da cannabis durante o tratamento. No entanto, a questão está mais ligada à genética do indivíduo e a eventual propensão do distúrbio. "O THC não pode causar esquizofrenia, por exemplo, mas pode propiciar um surto psicótico em uma pessoa que já tem uma genética, que vem de uma família que existe esquizofrenia", explica Sidarta. Por outro lado, o CBD pode ser melhor recomendado para os pacientes psicóticos. No tratamento da depressão, a principal discussão varia na dosagem. Isso porque diferentes doses de canabinoide podem ter efeitos anti-depressivos ou pró-depressivos.

Há também efeitos benéficos do uso da cannabis na oncoterapia. "Sabemos há décadas que a maconha mitiga os efeitos colaterais adversos da quimioterapia e da radioterapia. [Isso porque] a maconha aumenta o apetite, melhora o sono, diminui a ansiedade, a dor", comenta. No entanto, o que se descobriu, mais recentemente, foi que a cannabis contém substâncias antitumorais e pode ser usada de forma combinada com os tratamentos mais tradicionais, quando recomendada pelo médico responsável pelo caso.

Atuando no controle da dor crônica

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A prescrição de cannabis pode melhorar os efeitos de tratamentos agressivos para o organismo, como os oncológicos (já mencionados), em que alivia a dor. No entanto, é uma alternativa a ser considerada no alívio de dores crônicas. “A dor crônica é um problema de saúde com característica de doença e não de sintoma. Então, precisamos de políticas públicas que tratem a dor não, meramente, como um sintoma", defende o neurocirurgião funcional e diretor médico do Centro de Excelência Canabinoide (CEC), Pedro Antônio Pierro Neto.

"Os tratamentos oferecidos pelos serviços públicos e privados, no país, são insuficientes", comenta o neurocirurgião Peirro Neto sobre a falta de alternativas para essa condição. “Falamos mais das dores neuropáticas [um tipo de dor crônica], porque elas são mais difíceis de serem tratadas e alguns canabinoides acabam sendo uma ferramenta terapêutica que não pode ser dispensada. Ela pode ser usada com outras medicações, mas dependendo da medicação é preciso uma certa cautela entre as doses", explica.  

Nesse quesito, “a cannabis não é um novo tratamento, é um tratamento dos mais antigos para dor, mas é novo para a área médica. Por isso, é necessário que entendamos melhor isso, que novos estudos sejam realizados, para que possamos usar todos os recursos dos canabinoides no tratamento para a dor", completa o neurocirurgião sobre a substância.

Somente nos últimos anos, a ciência tem se aprofundado no real estudo dos componentes da cannabis e a eficácia para determinadas condições. Por exemplo, existem estudos clínicos que envolvem grupo placebo, randomização e duplo-cego. Todas são condições fundamentais para se obter uma boa evidência científica. Em 2020, é estimado que 3 mil publicações científicas foram compartilhadas sobre este tema.

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Vale lembrar que em algumas situações o termo maconha pode ser sinônimo de cannabis, mas isso só faz sentido quando se pensa, especificamente, na planta que dá origem aos inúmeros canabinoides, como o CBD. Em outras palavras, o uso medicinal da cannabis é bastante diferente do que se entende por "fumar maconha" e está relacionado com prescrição e acompanhamento médico. No caso brasileiro, é justamente esse uso terapêutico que se discute.