Miniórgãos revolucionam o que a ciência sabe sobre a COVID-19; entenda
Por Fidel Forato | •
Já pensou em ver como uma infecção se espalha, em tempo real, a partir de uma miniatura do organismo humano? Este seria, com certeza, o sonho da maioria dos cientistas e poderia auxiliar na compreensão do novo coronavírus (SARS-CoV-2). Ainda distante do organismo completo, pesquisadores já conseguem desenvolver órgãos em miniatura — também conhecidos como organoides —, em uso nos estudos da COVID-19.
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Por exemplo, os miniórgãos permitiram que especialistas avaliassem diferentes tratamentos possíveis contra a infecção do coronavírus, testando em seus tecidos diversos tipos de medicamentos. A partir desses organoides, também foi possível identificar que a COVID-19 não se limitava ao sistema respiratório e que ele era apenas a porta de entrada da doença. Hoje, sabe-se que o agente infeccioso afeta também o coração, o intestino, os rins e, até mesmo, o cérebro.
Antes da "popularização" dos miniórgãos, pesquisadores só conseguiam avaliar como uma infecção progredia em cobaias (humanas ou animais). Outra opção era o uso de cultura de células que permitia uma melhor análise, mesmo que localizada, das reações daquelas células contra um invasor.
Como são feitos os miniórgãos?
Para construir um miniórgão, a matéria-prima básica costuma ser células simples presentes na pele ou no sistema urinário. Depois dessa seleção das células, os cientistas as regridem para uma etapa anterior, transformando-as em células-tronco — tipos de célula que podem se diferenciar e dar a origem a, praticamente, qualquer outra célula, como um neurônio.
"De acordo com fatores que usamos no laboratório, fazemos com que essas células-tronco se diferenciem e se especializem novamente", explica a neurocientista Marília Zaluar Guimarães, do Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino, no Rio de Janeiro (IDor), para a BBC. De forma simples, os pesquisadores induzem uma metamorfose na célula.
No entanto, os organoides não são, somente, um amontoado de células que podem ser analisados com o auxílio de um microscópio. Nesse sentido, os miniórgãos são formações mais complexas e podem reunir diferentes tipos de células. Vale lembrar que um órgão é formado por diferentes tecidos celulares que se comunicam e exercem suas funções no nosso corpo. São essas funções que os cientistas procuram desenvolver, e não necessariamente o formato.
"No caso dos minicérebros, por exemplo, eles são esféricos, mas não têm a mesma formação do órgão verdadeiro. O que nos permite saber que aquela estrutura se assemelha à original são suas características celulares e bioquímicas", comenta o biólogo Daniel Martins de Souza, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Para a montagem das organoides, impressoras 3D são muito utilizadas.
"Os organoides, por outro lado, são compostos de diferentes células e têm uma estrutura tridimensional. Por isso, eles têm funções mais parecidas ao que acontece de verdade", afirma o farmacêutico Kazuo Takayama, professor da Universidade de Kyoto, no Japão.
Na luta contra a COVID-19
Na luta contra a COVID-19, há importantes trabalhos feitos no Japão e nos Estados Unidos sobre a análise de minipulmões. Nesse caso, os pesquisadores descobriram quais células o novo coronavírus, preferenciante, invade e destrói no sistema respiratório.
Para validar essas descobertas, uma equipe de pesquisadores da Stanford University School of Medicine avaliou a eficácia desses modelos para o estudo de doenças respiratórias. "Nossos estudos estabelecem uma facilidade in vitro modelo organoide para doenças infecciosas do pulmão distal humano, incluindo pneumonia associada à COVID-19", afirmam os autores em artigo recém-publicado na revista Nature. Além do coronavírus, validaram o método com o H1N1.
"De forma geral, os organoides permitiram que entendêssemos que células humanas o coronavírus consegue invadir e usar para se replicar. Nosso grupo demonstrou que isso acontece no intestino, o que ajuda a explicar os sintomas gastrointestinais observados em muitos pacientes", relatam os pesquisadores Joep Beumer e Maarten Geurts, do Instituto Hubrecht, na Holanda, sobre outras pesquisas na área.
Uso de miniórgãos em pesquisas brasileiras
Por aqui, dois grupos de pesquisa investigam os efeitos da COVID-19 no cérebro humano. No Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino, em São Paulo, pesquisadores desenvolveram neuroesferas — um miniórgão mias simplificado — para entender de que forma o SARS-CoV-2 poderia gerar danos ao sistema nervoso. Entre as descobertas do grupo, foi possível verificar que mesmo que o coronavírus chegue até essa parte do organismo, felizmente, ele não consegue se replicar e produzir novas cópias virais ali, o que reduz os seus danos.
Em paralelo, outro estudo desenvolvido na Unicamp, em Campinas, avaliou a presença do coronavírus nos astrócitos, que são um dos tipos de célula do sistema nervoso. Isso porque a invasão viral do coronavírus parece modificar a forma como essas unidades produzem energia. Em tese, isso impacta, diretamente, no funcionamento dos neurônios e na saúde do paciente. Fora da pandemia, a técnica dos minicérebros já foi usada para o estudo da esquizofrenia.
Mesmo que os miniórgãos representem um avanço incalculável para a ciência, essas pesquisas enfrentam inúmeros desafios, como a dificuldade de aportes financeiros, já que é uma tecnologia ainda cara. "Essa é uma área que dá seus primeiros passos e enfrenta desafios importantes. Muitas dessas estruturas são feitas com células que ainda estão imaturas, o que significa que elas não são 100% comparáveis com os órgãos de um adulto", comenta Núria Montserrat Pulido, professora do Instituto de Bioengenharia da Catalunha, na Espanha, apontando outras questões que, em breve, devem ser respondidas.