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Inovação vs tabu: health tech quer medir como seu corpo reage à cannabis

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Sistema endocanabinoide — você já ouviu falar dele? De acordo com estudos clínicos e experimentais recentes, nós, seres humanos, temos no nosso organismo um sistema biológico dotado de neurotransmissores que se ligam a proteínas encontradas na cannabis, ou maconha. Em outras palavras, a ciência revelou que cada um de nós tem no corpo uma fisiologia que funciona em resposta aos componentes da planta.

E, antes que pensemos na erva fumada, usada para uso recreativo, já vamos adiantar que, para além dos efeitos psicotrópicos da maconha (a famosa onda, ou brisa), existem diversos derivados da cannabis que, dia a após dia, se mostram terapêuticos não só para doenças degenerativas, como também para distúrbios neurológicos, psicológicos, psicomotores e até mesmo para patologias como fibromialgia e AIDS. Em outras palavras: a cannabis tem propriedades medicinais que vão muito além dos efeitos psicotrópicos. Dos mais de 500 compostos diferentes presentes na planta, aproximadamente 85 recebem a terminologia "canabinoide".

Mesmo que nunca tenhamos tido contato algum com a planta, estudos recentes mostram que temos um sistema responsável por regular o equilíbrio das funções do organismo, desempenhando funções como regulação de temperatura corporal, da fome e do sono, determinando nossos níveis de sensibilidade à dor e até desempenhando funções autoimunes e neuroprotetoras.

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Buscando quebrar tabus e apoiar-se na tendência dos testes farmacogenéticos, realizados online, pelos quais um paciente pode descobrir muito sobre o que seu genótipo diz sobre si mesmo, o brasileiro Fabrício Pamplona, co-fundador da health tech Proprium, contou ao Canaltech como a companhia resolveu inovar e trazer para o nosso país um teste que se baseia no seu DNA para determinar se você pode ou não usar remédios à base da planta, prescritos por um médico especialista.

Cannabis e medicina

Na última década, uma reviravolta envolvendo cannabis tem sacudido a área de pesquisa em saúde, principalmente após alguns medicamentos com compostos da planta terem demonstrado efeitos positivos em pacientes com as mais diversas patologias.

O foco desta matéria não é o uso recreativo da erva, mas sim os efeitos dos canabinoides no organismo de forma terapêutica, a partir de extratos que não causam "chapação" alguma.

Para isso, é necessário entender os efeitos de dois dos principais canabinoides: o THC (tetrahidrocanabidiol) e o CBD (canabidiol). Exclusivas da planta, essas moléculas se ligam a receptores do corpo humano, chamados de CB1 e CB2, podendo gerar sensações anestésicas e terapêuticas. A principal diferença entre eles é que o THC é responsável pelos efeitos psicoativos da planta, categorizado como um psicotrópico depressor, analgésico e neuroprotetor, enquanto o CBD possui ações terapêuticas, anti-inflamatórias e antioxidantes, sendo inclusive capaz de modular a atividade neuronal (bem como os efeitos do THC) e agir sobre aproximadamente 40 "alvos" — desde insônia a epilepsia refratária.

É por isso que a oferta no mercado de compostos à base de cannabis varia de acordo com a legislação local, que de maneira geral regula, principalmente, a proporção de THC, que costuma ser mais limitada, por ser um psicotrópico neurodepressor de ação rápida. Em contrapartida, os limites nas proporções de CBD são mais raros.

Em dezembro de 2019, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou num novo regulamento para registro de produtos à base de cannabis para fins medicinais, em todo o país, estabelecendo parâmetros de qualidade. A partir dessa data, foi determinado que produtos à base de cannabis poderiam ser comercializados, mas não plantados. Caso empresas queiram produzir os produtos em território nacional, terão de importar somente o extrato da planta, já que o seu cultivo permanece ilegal. O consumo recreativo também continua ilegal e o ato de comprar ou vender fora destes estabelecimentos configura crime no Brasil. A medida entrou em vigor em 10 de março de 2020.

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Se hoje temos acesso — muito embora o preço cobrado seja um grande impeditivo — a fitofármacos derivados do cânhamo, é porque a venda de CBD já está autorizada no Brasil. No entanto, a matéria-prima deve ser exclusivamente importada, já que não se pode plantar por livre e espontânea vontade em solo nacional sem, antes, conseguir uma liminar na justiça comprovando a necessidade do uso terapêutico da erva. E embora cada vez mais médicos estejam prescrevendo cannabis no país, ainda não é fácil encontrar um em cada cidade.

Isso não quer dizer que, nas pesquisas, o THC não esteja sendo empregado para tratar determinadas afecções, como é o caso do glaucoma (aumento da pressão ocular). Em busca de entender os mecanismos dessas moléculas, a forma como seres humanos as metabolizam e os efeitos resultantes desses metabólitos, Pamplona idealizou um teste genético que traça o perfil de cada pessoa e seus receptores, o que auxilia tanto paciente quando médico a determinar uma dosagem correta com o composto correto para o tipo de doença ou distúrbio apresentado na consulta.

Farmacologista de formação, especialista em canabinóides, conselheiro do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e diretor científico da Proprium — health tech que mescla tecnologia e medicina para oferecer ferramentas disruptivas a pacientes e médicos — Pamplona explicou, em entrevista ao Canaltech, que a base de sua área de atuação é entender como os medicamentos são capazes de tratar sintomas. E a genética fica responsável pelo outro lado, da medicina personalizada: o que o paciente vai fazer com determinada substância circulando em seu organismo? Ele tem algum indicativo em sua biologia que sugere eficácia de determinados fármacos? Ou, pelo contrário, que não sugere eficácia alguma?

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"Se a gente puder identificar dentro de um arsenal terapêutico qual substância se adequa melhor à biologia do paciente, ótimo! Felizmente, a genética já está pronta para fazer isso", revela Pamplona sobre sua ideia que virou um teste genético chamado MyCannabis Code.

A Proprium, aliás, possui quatro testes no total, todos vitalícios, que visam traçar perfis farmacogenéticos, de aptidão física, nutricionais e, claro, baseados no sistema endocanabinoide. A startup funciona de maneira internacional, já que opera nos mercados brasileiro, europeu e americano.

Painel genético: assertividade longe de efeitos adversos

Com base nos polimorfismos — variações genéticas naturais que diferenciam os indivíduos, usadas para estudar o metabolismo e a fisiologia de cada pessoa —, o teste genético MyCannabis Code busca traçar um panorama, a fim de gerar um painel farmacogenético completo, tanto para o paciente, quanto para o médico que irá tratá-lo. Em suma, ele avalia uma série de genes dentro do DNA do paciente e, com base nos polimorfismos, consegue determinar características individuais como facilidade para metabolizar CBD ou contra-indicação para usar CBD, por exemplo.

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Atualmente, o teste farmacogenético para o sistema endocanabinoide sugere tratamentos alternativos que podem ser usados em diversas especialidades da medicina, como oncologia, psiquiatria, pediatria, neurologia e geriatria, trazendo mais segurança e precisão ao tratamento.

"Um paciente com dor crônica ou paciente oncológico, por exemplo, sente muitas dores com as quais não consegue conviver. A imensa maioria faz uso de opioides, e muitas pessoas entram na rotina de tomar opioides diariamente e acabam desenvolvendo dependência", exemplifica. "Por isso, a cannabis acaba sendo uma alternativa para esses pacientes", conclui, comparando a terapia com derivados da planta em relação aos analgésicos pesados que usam ou poderão continuar usando por meses ou, até mesmo, anos.

Com os testes farmacogenéticos (para medicamentos alopáticos e canabinoides), é possível entender se o paciente responde melhor a derivados da cannabis, opioides ou outros analgésicos. Basta uma amostra de saliva para que um mapa do sistema fisiológico do paciente seja destrinchado, e, dessa forma, o médico consiga prescrever o remédio mais indicado para o tratamento. "Você consegue poupar sofrimento, ganhar mais assertividade na sua terapia e economizar dinheiro com tentativas e tratamentos", pontua Pamplona.

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Como funcionam os testes

Disponível no Brasil através do site da Proprium, o MyCannabis Code é um teste baseado em amostra de saliva para coleta de DNA e genotipagem. Ao comprar o exame, o paciente recebe em casa um frasco com um swab e orientações sobre como realizar a coleta e criar um perfil na plataforma. Você mesmo insere um swab na mucosa bucal e coleta saliva, depois fecha o frasco, enbala tudo direitinho e envia de volta à Proprium pelo correio. O valor dos testes varia de 1.600 a 2.600 reais — sendo o MyCannabis Code o menos oneroso.

O material biológico passa, então, por análise em laboratório especializado fora do Brasil e retorna dentro de 30 a 45 dias, em forma de um painel completo com todas as informações sobre o sistema endocanabinoide daquela pessoa. Para ver os resultados, basta acessar o perfil dentro do MyCannabis Code, na plataforma online, ou imprimir os resultados para levar ao consultório médico.

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Proteção de dados

Os testes realizados pela health tech coletam dados como CPF, nome e informações genéticas do paciente, que necessita criar um perfil na plataforma para ter acesso vitalício aos resultados. No entanto, quando questionamos Fabrício sobre a proteção de dados e a conformidade dessas informações com a LGPD, ele explicou que tudo é anonimizado e criptografado, atendendo à legislação vigente.

O DNA extraído das amostras biológicas de saliva analisa 29 genes associados aos efeitos dos canabinoides e resulta em um painel com 55 variantes. Todo esse processamento envolve muita tecnologia, já que a Proprium é dona de seu próprio algoritmo, criado com base em mais de 100 artigos científicos sobre a farmacogenética dos canabinoides. Médicos, geneticistas, farmacologistas e biólogos computacionais fazem parte da equipe.

Assim que realizamos o teste, assinamos um termo de consentimento livre e esclarecido, que resguarda que sua amostra será testada quanto aos polimorfismos, e esses dados, depois de anonimizados, podem integrar uma plataforma de informações usadas para fins de pesquisa. Em outras palavras, ninguém vai saber que aquele resultado pertence a um determinado nome ou CPF (a menos que um hacker consiga invadir os sistemas, descriptografar as mensagens e interpretar os resultados genéticos), mas os dados servirão de apoio para que mais pesquisas sejam desenvolvidas na área.

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Segundo Pamplona, empresas que realizam testes genéticos não têm qualquer propriedade sobre a informação dos pacientes. O que acontece é que elas podem utilizar um conjunto delas, misturadas e anonimizadas (o chamado pool de dados), para alimentar inteligências artificiais, bases de dados e melhorar a tecnologia dos exames, tudo com base em certificação digital da ICP Brasil (Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira) — uma cadeia hierárquica que viabiliza emissão de certificados para identificar, virtualmente, pessoas físicas ou jurídicas.

Após os testes: a quantas anda a cannabis medicinal no Brasil?

À medida que mais regiões do mundo legalizam o uso recreativo e/ou medicinal da maconha, ela começa a ser entendida do ponto de vista clínico. Novos estudos conduzidos para a geração de medicamentos com potencial terapêutico para uma infinidade de doenças passam a ser desenvolvidos. Até agora, o grande desafio é entender como funcionam seus compostos e de que forma podem ser combinados para produzir os efeitos desejados — que vão desde funções anestésicas até efeitos psicoativos.

De posse dos resultados, pacientes e médicos poderão conhecer melhor como funciona o metabolismo de cada pessoa em relação aos fitofármacos derivados da maconha. Questionado sobre as principais aplicabilidades da erva no combate a doenças e transtornos, Fabrício abre um leque de exemplos e cita desde neuropediatria até AIDS.

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"No Brasil, essa onda do CBD começou por conta dos tratamentos de epilepsia e, também, graças aos neuropediatras. Mas antes disso, na década de 1980, os primeiros pacientes a serem tratados com cannabis no país foram os HIV+, para redução de náusea, inapetência e dores causadas pela AIDS, bem como geração de bem-estar", cita o especialista.

Indo além dos casos de 30 anos atrás, Pamplona destaca que, atualmente, no Brasil, a cannabis é empregada para tratar: pacientes que sofrem de crises epilépticas; pacientes oncológicos em quimioterapia, a fim de reduzir efeitos adversos como náuseas e promover bem estar; pessoas com esclerose múltipla, doença de Alzheimer e doenças neurodegenerativas motoras em geral; pacientes que sofrem de dores crônicas neurogênica (como fibromialgia e herpes zoster, por exemplo).

Além da luta pela permissão judicial para que a maconha pare de ser vista só como droga recreativa, ainda é preciso transgredir o tabu ao redor da planta no Brasil. Perguntamos a Pamplona, que atua na luta pela regulamentação da cannabis medicinal há mais de 10 anos, como vem sendo quebrar esse tabu e provar os efeitos benéficos dos derivados da planta. "É difícil dissociar", dispara o especialista. "Hoje está bem evidente que você consegue ter efeitos terapêuticos independente dessa sensação do 'barato'. Você não precisa de um para ter o outro. E por via oral, a forma que a substância age no corpo é diferente. Ela não dá um pico; você consegue controlar doses muito mais brandas, ter efeitos muito mais sutis [que pela via inalada]".

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Durante a conversa, Fabrício também mostrou que a cannabis vem sendo cada vez mais utilizada para tratar distúrbios de ansiedade e insônia, o que fez aumentar a procura pelo óleo de CBD (extraído de espécies terapêutcias da cannabis), principalmente após a aprovação da Anvisa, aliada aos efeitos do isolamento social e dos reflexos da pandemia da COVID-19. "Frequentemente, os resultados têm sido obitidos com dosagens muito baixas, cerca de 10 vezes mais baixas do que as doses necessárias para causar efeitos narcóticos", explica.

Prescrição de canabinoides

Com os resultados dos testes em mãos, uma pessoa pode buscar ajuda médica e ajudar o especialista a entender melhor qual a dosagem ideal de partida para o tratamento com canabinoides. Hoje em dia, como as principais doenças atreladas aos efeitos benéficos da cannabis são de origem neurológica, geriátrica, oncológica e psiquiátrica, para que um paciente consiga ter acesso a um medicamento à base de CBD, por exemplo, precisa antes passar por um desses especialistas e obter prescrição. Daí, o segundo passo é conseguir obter a medicação — e é aí a parte mais complicada da história, seja pelo altíssimo valor do remédio regulamentado pela Anvisa nas farmácias, seja pela burocracia de conseguir, junto à lei, licitação para plantar maconha em casa e fazer uso terapêutico de seus extratos.

Quando questionado sobre o principal objetivo da genotipagem, após a conclusão dos testes, Fabrício bate na tecla da homeostase (condição de equilíbrio necessária para que o organismo desempenhe suas funções adequadamente) e do autoconhecimento. "São duas informações: quanto ao metabolismo de canabinoides e seus impactos, dependendo da via de administração (inalada, oral ou sublingual); e a dosagem correta, com base no seu tipo de metabolismo", explica. O médico vai ser mais assertivo ao iniciar um tratamento com 1 mg ou 10 mg de THC para um determinado paciente, por exemplo, podendo ajustar a dose gradativamente. "O teste também dá informações em relação a efeitos adversos potenciais, como ansiedade e psicose, efeitos cognitivos e em coordenação motora, dependência e impacto na funcionalidade cotidiana", emenda, reforçando que o "mapa genético" do paciente pode emitir alertas e/ou informar se ele é mesmo apto a começar um tratamento com canabinoides.

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Nosso código genético também mostra se nosso sistema endocanabinoide encara os derivados da maconha como prejudiciais, e os resultados do teste podem avisar, de antemão, se temos predisposição a efeitos colaterais que impactariam negativamente um potencial tratamento com canabinoides, como óleo de CBD com baixas dosagens de THC, por exemplo. "Nosso teste mostra 19 pontos da etapa clínica de efeitos adversos da cannabis. Se você tem os polimorfismos associados a eles, seu médico pode ir acompanhando e ficar atento, seja para suspender o tratamento ou reduzir a dosagem para evitar esse tipo de efeito", explica Pamplona. Nos resultados, é possível ver se um paciente tem um tipo de alelo considerado normal, com base na população, ou se suas funções são aumentadas ou reduzidas para determinado efeito — são eles os polimorfismos.

No final das contas, o teste gera para o médico informações como qual a composição ideal do medicamento para determinado paciente, as opções que existem, os efeitos que podem acontecer e a dosagem correta de THC ou CBD para cada doença. Hoje em dia, ele mostra como funciona o metabolismo do paciente em relação aos canabinoides e seus receptores. Futuramente, com a evolução natural da tecnologia empregada nos exames, poderá mostrar para qual doença a cannabis pode ser útil, dentro do perfil daquele paciente, com base em suas informações genéticas.

"Eu não tenho a mínima dúvida de que o CBD vai ser a primeira escolha para epilepsia. Os canabinoides, talvez até o THC, ainda serão a primeira escolha para fibromialgia. Acho que para o autismo vai acontecer também, mas ainda faltam mais estudos controlados — embora o que médicos e famílias relatam [de pacientes autistas usando CBD] chegue a ser emocionante", vislumbra Pamplona.

Para conhecer a Proprium e seus testes genéticos, clique aqui.

Fonte: Com informações: Journal of Neurochemestry, Expert Opinion on Therapeutic Targets, Nature Reviews Drug Discovery