App usa IA para ajudar no tratamento de crianças com lábio leporino
Por Wagner Wakka | •
Trícia Araújo tinha de quatro para cinco anos quando começou a fazer um tratamento de lábio leporino, uma anomalia congênita em que o bebê nasce com uma fissura no lábio ou palato, ou até em ambos. A recuperação deve ser feita o quanto antes e consiste uma série de exercícios que, embora por vezes simples, são repetitivos e pouco divertidos. Principalmente, para uma criança em descoberta de mundo.
A difícil experiência foi o que motivou Trícia a criar o Fofuuu, uma plataforma para fonoaudiólogos acompanharem tratamentos com foco em pacientes infantis. “Eu nasci com lábio leporino e fiz oito anos de tratamento, 15 cirurgias e era muito chato, repetitivo. Era exaustivo fazer o tratamento há quase 30 anos e, hoje em dia, não mudou em nada, ele continua chato”, conta Trícia.
Neste conjunto de aplicativos, o profissional pode selecionar uma série de exercícios transformados em jogos para que a criança treine sem ter a sensação de obrigação. Por exemplo, um dos minigames focado em fonemas da letra F cria a história de que cometas estão caindo na Terra. A criança, então, precisa evitar a colisão enchendo balões que levam tais cometas embora. Para isso, é preciso literalmente soprar o tablet por um determinado tempo e salvar nosso planeta deste grande perigo.
Caso você tenha dúvidas de se a diversão é garantida mesmo com os exercícios, o Fofuuu ganhou o prêmio de Melhor Jogo Infantil no Brazil’s Independent Games Festival (BIG), escolha feita por um júri mirim do Grupo de Apoio à Criança e ao Adolescente com Câncer (Graac). A premiação aconteceu no último dia 28.
A plataforma consiste em dois aplicativos: o Fofuuu Kids e o Fofuuu Pro. A versão infantil traz os exercícios gameficados com pontuação e estímulos diversos para os pequenos. Ao todo, o programa trabalha com 81 fonemas diferentes.
Já o app Pro é voltado para o monitoramento do profissional. O fonoaudiólogo passa uma série de exercícios personalizado para a criança, indicando frequência e como ela deve fazer em casa. O programa registra todas as ações, não só se o pequeno está fazendo, bem como se está fazendo certo ou não. Junto disso, a ferramenta ainda permite enviar notificações em push para o app da criança com palavras de incentivo ou mesmo indicando que o exercício está sendo feito de forma errada.
Tecnologia
Trícia explica que todos os jogos da plataforma usam apenas o sistema de som dos tablets e smartphones e todos os exercícios foram montados com base em um sistema de inteligência artificial.
“A gente faz nossos jogos na Unit e eles funcionam com reconhecimento de som. Então, a gente treina a máquina para reconhecer os fonemas diferente como S do Z e, hoje em dia, a precisão do nosso sistema está em torno de 70%”, relata Trícia.
O objetivo do time é chegar a uma precisão de 95% no sistema. Para isso, eles precisam alimentar um banco de dados de vozes com as quais o mecanismo de inteligência artificial aprende a diferenciar os fonemas da língua portuguesa e reconhecer se a criança está reproduzindo o som certo ou não.
Atualmente, o grupo conta com algo em torno de 70 mil áudios, mas precisa de muito mais para conseguir melhorar o app. Para isso, eles contam com uma campanha de doação de vozes. Isto é, quaisquer pessoas podem usar um programa criado pela Fofuuu e, seguindo alguns poucos passos, incluir a sua voz no banco de dados do sistema para ajudar no reconhecimento sonoro.
“O programa tem os fonemas isolados de som e os mesmo fonemas em sílabas. Ou seja é o som do S, Z, C, por exemplo, e a junção com Sa, Se Si; Za, Ze Zi e por aí vai. Então, uma pessoa grava por volta de dois minutos e meio disso. Ao todo, são 81 fonemas e, rapidinho, com 2 segundos cada, já dá para contribuir com a doação de sua voz pra gente”, explica Trícia.
No BIG, eles levaram um app que ajudou a elevar esse número em quase o dobro do inicial. Entretanto, a campanha para alimentação do banco de dados continua pelo site oficial da empresa.
História
Embora o Fofuuu tenha chegado a um momento de premiação, a trajetória dos integrantes representa a história do conturbado empreendedor. A ideia nasceu exatamente no festival de games independentes. “A gente nasceu no BIG de 2015, ganhamos o Starter e ainda era um projeto no papel, praticamente um PowerPoint. Foi muito legal, na época, porque a gente não sabia que tinha uma ideia tão boa. Descobrimos no BIG”, lembra Trícia.
O BIG Starter é uma parte do evento que premia projetos ainda não finalizados, com foco na formação de novas empresas para ajudá-las a ganhar potencial de mercado e visibilidade enquanto indústria. Foi exatamente isso que aconteceu com o Fofuuu.
Além do prêmio de R$ 20 mil, o grupo ganhou a oportunidade de tirar a ideia do papel, mas derrapou já logo no início. “Eu falo que a gente quebrou a cabeça um ano depois. Gastamos tudo errado. A gente tinha noção de como fazer, mas não de como fazer aquilo virar um negócio. Sabíamos como fazer o bem para as pessoas, mas não como tornar aquilo em algo sustentável. Assim, nós fomos para um festival internacional, com uma experiência pessoal super legal, mas a gente gastou um dinheirão para ir e ficamos na mão depois”, confessa.
Trícia conta que a solução foi participar de um programa de aceleração de startups em um laboratório chamado Bio Startup Lab, dentro da Bio Minas. Essa é uma empresa com foco em ciências da vida situada em Belo Horizonte. Essa foi a época de aprendizado e de esforço para o grupo.
“A gente ficou quatro meses morando em um container e foi muito engraçado isso, pois a gente não tinha dinheiro, já que a gente tinha gasto todo o do BIG. É uma história que a gente gosta de contar. Já que a gente entrou de cabeça mesmo”, relembra.
O tempo foi suficiente para que ela e o marido, Bruno Tachinardi, também sócio no projeto, participassem de um campeonato nacional da aceleradora. Mais uma vez, a ideia foi a campeã. Com isso, em 2016, eles voltaram à São Paulo e se juntaram a Lígia Cardoso, sócia que também se tornou a consultora financeira da equipe.
O time então rumou para uma outra competição, desta vez do Hospital Sírio Libanês, o qual daria R$ 50 mil em barras de ouro. Com mais de 600 participantes, o Fofuuu mais uma vez saiu vencedor. “Nós ficamos entre os cinco finalistas com ideias incríveis assim. Tinha gente com projeto de Harvard, do MIT. Foi muito poderoso para gente ver qual a dimensão da nossa ideia”, Trícia aponta.
Com os R$ 50 mil na mão no final de 2016, eles conseguiram contratar os primeiros 3 funcionários da empresa, que leva também o nome de Fofuuu. Disso, eles criaram o mínimo produto viável (MVP) para apresentação a investidores e conseguiram um aporte de meio milhão de reais de investidores-anjo.
Junto disso, ainda, eles participaram de um edital da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), entidade de fomento à ciência e tecnologia, o que rendeu mais R$ 1,5 milhão em capital.
“Hoje, estamos com uma equipe de 14 pessoas em São Paulo. Com estes investimentos, a gente acredita que dá para sobreviver e pagar as contas até o final do ano que vem, ultrapassando o chamado ‘vale da morte’ de startups no Brasil”, comemora. “Vale da morte” é o termo dado ao momento de vida de uma startup em que ela começa a ter equilíbrio financeiro, estado em que grande parte das empresas iniciais no Brasil fecha suas portas.
Por fim, Trícia conta que, acima de todo aporte financeiro que recebeu até o momento, grande parte da alegria do projeto foi conseguir cativar as pessoas para o que a ideia tem de melhor: ajudar no tratamento infantil.
“Atualmente, são mais de 3 mil fonoaudiólogos tratando, além do lábio leporino, crianças com autismo, síndrome de Down, apraxia e outras condições. As pessoas se sensibilizam com a nossa causa e também querem ajudar, isso é muito gratificante para a gente. Sempre conhecer a história de gente que, como eu, conseguiu superar este problema que não é nem um pouco fácil”, finaliza.
Ambos aplicativos do Fofuuu estão disponíveis tanto para iOS quanto para Android. Os programas têm um período de testes de sete dias e possuem uma assinatura mensal para serem usados.