A futura indústria da cannabis no Brasil e o desafio do alto preço dos produtos
Por Fidel Forato | •
Em busca da desmistificação da maconha como medicamento, foram anos de diálogo e luta pela liberação de produtos à base de cannabis para fins medicinais — que são bem diferentes de seu uso recreativo, vale salientar. Como parte do direito à saúde conquistado, no próximo mês, a partir do dia 10, entrará em vigor a regulamentação elaborada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que permitirá a comercialização desses produtos, em farmácias e drogarias, mediante à prescrição médica e sujeita a rígidos controles de qualidade.
No entanto, esse regulamento traz uma série de particularidades, como a proibição do cultivo e produção da cannabis em solo brasileiro também para fins médicos. Em outras palavras, significa que todo o produto desenvolvido ou comercializado aqui deverá ser importado de outro país, onde sua plantação é legalizada. A partir dessa limitação para a indústria brasileira, foi organizado o encontro The Future of Cannabis and Hemp in Latin America, em Punta del Este, no Uruguai, com a proposta de trocar conhecimentos entre países com uma legislação mais avançada sobre o tema, como Uruguai, Canadá, Portugal e Estados Unidos.
Presentes no evento uruguaio, a advogada Alessandra Mourão, uma das organizadoras do encontro e e sócia fundadora do escritório Nascimento e Mourão Advogados, e o empreendedor Eduardo Sampaio, que é CEO e fundador da Piauhy Labs Portugal e sócio da Grune Labs Uruguay, ambas empresas de cultivo e comercialização da cannabis para fins medicinais, conversaram com o Canaltech sobre os desafios desse incipiente mercado no Brasil.
Legislações no mundo
Com a recente regulamentação brasileira da Anvisa, que ainda não está em vigor, será permitida a produção de produtos a base de cannabis para fins medicinais. Até então, um paciente, para ter acesso a esses produtos, precisava de uma autorização judicial para sua importação. Agora, empresas localizadas no país poderão produzir seus próprios produtos, desde que com matérias primas importadas. "Teremos que nos beneficiar de outros países que têm uma outra regulamentação, onde o cultivo é permitido, para trazer o insumo [biomassa com os princípios ativos]. Necessariamente, a atividade de produção final brasileira terá que ser internacional”, explica a advogada Alessandra Mourão.
Por isso mesmo é tão importante entender de que forma outros países lidam com a questão da maconha, seus usos e sua regulação. Nesse cenário, o Uruguai foi o primeiro país a estabelecer uma lei sobre cannabis no mundo, tanto para o uso medicinal quanto recreacional, em 2013. O projeto de lei (PL) encabeçado pelo presidente da época, José Mujica, legalizava a produção, a venda e o consumo da planta com suas especificidades.
Inclusive, criava uma agência específica para seu controle, o Instituto de Regulação e Controle de Cannabis (IRCA). O empresário Eduardo Sampaio conta que é sócio de uma das primeiras empresas a solicitar a licença de produção no país de origem espanhola, a Grune Labs Uruguay, e que "estamos em fase de expansão, esperando exportar os nossos produtos para o Brasil."
Depois do Uruguai, foi a vez do Canadá regularizar formas de consumo da cannabis em seu território, de forma abrangente, sendo o primeiro entre os países desenvolvidos a legislar sobre o tema com o primeiro-ministro Justin Trudeau, em 2018. No mesmo ano, Portugal, por iniciativa do congresso, aprovou um PL que permitia a criação de uma indústria de cannabis no país lusófono. Já no ano passado, foi a vez de Israel regulamentar seu uso através do parlamento.
Divisão norte-americana
Nesse cenário internacional da cannabis medicinal, os Estados Unidos são um caso a parte. Cada estado tem as suas próprias leis a respeito do tema (inclusive, regiões que proíbem completamente o uso). No entanto, estados como o Colorado e a Califórnia são importantes players internacionais, principalmente, por suas pesquisas de ponta relacionadas à planta. Há ainda outras regiões, como Illinois, Maine, Massachusetts, Michigan e Nevada caminhando na mesma direção.
Só que, na ausência de uma lei federal que regulamente seu consumo, seja medicinal ou não, "a cannabis é classificada como schedule 1. Essa categoria significa, basicamente, que são substâncias com alto poder de causar danos para a sociedade e que não têm nenhum tipo de uso medicinal, como a heroína e o crack", explica Sampaio. Ainda segundo o empresário, essa postura pode ser entendida como "um crime contra o bom-senso."
E nos poucos temas sobre os quais intermeia, a lei federal norte-americana proíbe a exportação de produtos com alta concentração de THC (substância psicoativa da maconha), o que inviabiliza o uso de seus produtos no mercado internacional, como o Brasil. Dimensionando o problema, Sampaio comenta que "o tratamento para esclerose múltipla recomenda proporções iguais entre THC e CBD [canabidiol, outro composto da planta], ou seja, se eu não posso exportar produtos com THC, eu não posso exportar produtos dos estados Unidos para pacientes com esclerose múltipla."
Pelo fato da cannabis não ter uma jurisdição federal, oficialmente os bancos não podem se envolver com companhias do tipo. Isso porque as instituições financeiras poderiam ser considerados como colaboradoras em atividades de lavagem de dinheiro. "Se eu estiver no estado do Colorado e tiver uma empresa devidamente licenciada, ainda sim essa empresa está à margem da lei e terá dificuldade em abrir conta em algum grande banco americano", exemplifica Sampaio.
Como os bancos costumam ter uma atuação global, as exigências americanas se espalham por outros países, como o Uruguai, onde essas atividades são lícitas. Sobre a empresa em que é sócio, a Grune Labs Uruguay, Sampaio já teve as contas bancárias encerradas em dois bancos uruguaios, porque a matriz não permitia a prestação de seus serviços a essas companhias. Para solucionar o problema, corre no senado norte-americano a lei SAFE Banking Act, que visa regularizar as operações financeiras.
Mercado brasileiro
Se pairam questões, de maneira geral, sobre a cadeia de produção e de consumo no mundo todo sobre a cannabis medicinal, isso não seria diferente no Brasil, ainda mais com sua tímida e ainda nova regulamentação. "A Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi) endereçou 20 perguntas para a Anvisa sobre a regulamentação, tangindo pontos que não ficaram claros", ilustra a advogada Mourão.
De acordo com a profissional, há questões que nem o órgão regulador tem uma posição definida ainda. “Estamos falando de uma planta que tem uma grande carga de preconceito por causa de seu uso recreativo", pontua. Mesmo com a regulamentação, para que "um paciente possa fazer uso de um produto a base de cannabis, é necessário uma declaração de próprio punho de que foram tentadas outras formas de tratamento para sua situação e, como não resta mais nenhum tratamento, irá usar um desses produtos", explica Mourão.
“Estamos dando remédios para pessoas que têm doenças e que podem ser cuidadas com esse medicamento", enfatiza a advogada. No entanto, o termo "medicamento" é questionado pela própria Anvisa, em uma postura que Mourão considera "esquizôfrenica", já que a regulação proíbe que esses produtos à base de cannabis sejam chamados de medicamentos. Inclusive, exigirá um rótulo especial que esclareça isso, ao mesmo tempo que exige condutas de produção idênticas aos procedimentos para medicamentos.
Independente desse cenário, Sampaio é otimista com as novas possibilidades: “O Brasil será um dos maiores mercados do mundo para cannabis medicinal, mas essa realidade vai demorar um tempo para chegar." O empresário defende seu ponto de vista diante da lista de tratamentos para doenças à base da planta, que não para de crescer. De acordo com ele, "existe uma quantidade crescente de evidências de que medicamentos derivados de plantas do gênero cannabis são efetivas numa série de enfermidades."
Além disso, para Sampaio, "estima-se que numa primeira onda de aceitação da cannabis medicinal, isso equivale ao alcance 0,4% da população. Em um segundo momento, esse número tem potencial de aumentar.” Em números, essa porcentagem da população brasileira equivaleria a mais de 80 mil pacientes. Atualmente, são cerca de 11 mil inscritos no programa de importação da Anvisa.
Por enquanto, os tratamentos mais eficientes são para epilepsia refrataria — aqueles quadros que não respondem ao tratamento tradicional —, autismo, tratamentos relacionados ao câncer e aos efeitos colaterais do tratamento, além das aplicações para a terceira idade, como em casos de dores crônicas e demências, principalmente as doenças de Parkinson e de Alzheimer.
Custos proibitivos
Um dos maiores desafios para a implementação e popularização dos produtos a base de cannabis no Brasil será o custo. Afinal, os tratamentos mais "populares" no país podem chegar a quatro mil reais. “Quantos pacientes podem gastar essa quantia com um único medicamento? Esse número é obviamente pequeno, por isso o custo nessa faixa de preço é proibitivo", explica Sampaio.
De acordo com o empresário, os preços altos mostram algo de errado na cadeia de fornecimento desses medicamentos no país até agora, por isso mesmo os valores devem diminuir nos próximos meses. "Sei quanto custa produzir, produzo no Uruguai com os melhores padrões que há no mercado, por exemplo, meu cultivo é indoor [em estufas] e toda nossa extração é feita com CO2 supercrítico, ainda assim é possível comercializar esses produtos por um décimo do que está sendo cobrado”, esclarece Sampaio.
Outra questão é que muitos desses produtos comercializados no país nem chegam a ter um padrão elevado ou premium de produção, o que poderia justificar os altos preços. É o caso do "óleo de cânhamo industrial produzido nos Estados Unidos, em grandes hectares e colhido com tratores. Esses produtos deveriam custar um real, dois reais a cápsula", afirma Sampaio.
Caso os preços desses produtos não se tornem mais acessíveis, é possível que prejudiquem o próprio mercado, ainda em fase de desenvolvimento. Isso porque pacientes que precisem desses produtos, mas não têm condições financeiras pra adquiri-los, provavelmente optarão por vias ilícitas. Nesse sentido, Sampaio alerta para a possibilidade de produção caseira, afinal, trata-se de um extrato de planta de fácil obtenção, mas dificilmente na quantidade exata. "Não recomendo isso, principalmente, para distúrbios psiquiátricos, como autismo", já que os efeitos podem ser muito nocivos.
Uma outra possibilidade que se abre é o surgimento de um mercado de produtos ilegais e não registrados que, em tese, pode vir a se tornar popular, caso somente alguns tenham acesso a esses produtos por conta dos preços impraticáveis para a maioria da população.
Esqueça todos esses problemas
Se até agora o problema vem sendo o plantio, o manuseio ou o uso da cannabis para tratamento de inúmeras doenças, isso pode acabar em breve. Já existem novas técnicas voltadas para a produção isolada das substâncias da cannabis, como o THC, a partir da biossíntese.
De maneira geral, a técnica consite no uso de algum microorganismo vivo, como uma bactéria ou um fungo, que tem seu código genético modificado para a produção de outras substâncias, que ele naturalemnte não produziria. Esse processo é muito utilizado na produção da insulina (hormônio usado por diabéticos), mas nem sempre foi assim. Até os anos 70, a maior parte da insulina consumida no mundo era derivada de suínos, que é naturalmente muito parecida a humana. Só que a partir de 1975, foi possível reproduzir essa substância em laboratório e em maior escala, via biossíntese.
Na área da cannabis, isso também se tornou possível. Embora existam pesquisas sobre a biossíntese há anos, até o ano passado, não eram viáveis comercialmente, ou seja, o custo de produção era muito mais caro do que o do plantio. Em fevereiro, pesquisadores da Universidade da Califórnia, em Berkeley, solucionaram a questão da eficiência com determinadas alterações em uma bactéria, chegando a um custo total parecido com o do plantio da erva.
Com a produção economicamente viável de THC, CBD e outros canabinoides da maconha, em laboratório, Sampaio desenvolve pesquisas na Piauhy Labs Portugal, onde é CEO, para descobrir microorganismos vivos capazes de realizar essa produção e, quem sabe, deixar para trás grande parte das discussões sobre a maconha como ainda é vista hoje no Brasil.