Entenda como Homem-Aranha e Watchmen definem o que é heroísmo nas HQs
Por Claudio Yuge | •
Se você perguntar para a maioria dos fãs de quadrinhos o que o Homem-Aranha tem a ver com Watchmen, provavelmente vai receber a resposta: “nada”. Mas não é bem assim: a trajetória antagônica de ambos tem tudo a ver com a redefinição do conceito de heroísmo ao longo de 30 anos — e eu posso provar.
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Não vamos entrar em uma profunda discussão sobre o que é heroísmo ao longo dos séculos; o recorte aqui é a partir o Homem-Aranha do John Romita Sr., que se tornou uma referência para o conceito dos “mocinhos” da Marvel Comics na virada dos anos 1970 para 1980. Resumidamente, a ingenuidade da Era de Ouro dos Quadrinhos e as motivações e explicações mirabolantes da Era de Prata deram lugar à simplicidade e ao altruísmo de um protetor incorruptível.
Se você observar bem os inimigos do Homem-Aranha, vai notar que todos têm uma história trágica e uma mutação acidental. A grande diferença é que todos os vilões se corromperam, enquanto as lições do Tio Ben e da Tia May mantiveram a cabeça de Peter Parker no lugar. Não importa o quanto o Escalador de Paredes tenha que pagar, a preservação da vida sempre será sua principal missão.
O heroísmo redefinido pelo Homem-Aranha do John Romita Sr. deixa de lado a valentia, a derrota dos vilões ou uma lição de moral. A mensagem que Peter Parker transmite até hoje é que somente um caráter inabalável, uma resiliência extrema, e a riqueza de espírito podem capacitar a empatia ao nível de altruísmo. Ninguém aguenta levar tanta surra do mundo e continuar lutando como o Amigão da Vizinhança.
Peter Parker mostrou que um herói pode ser falível e mundano; e pode “perder” aos olhos de quem transforma medo em violência. Mas enquanto sua convicção for inabalável, e seu caráter for incorruptível, qualquer um que buscar por esses valores pode ser um super-herói.
E isso vale até hoje. Teve uma época em que a Marvel insistia em tornar a história, o comportamento e as motivações de seus heróis em algo único, raro. Mas, veja bem, hoje temos um Aranhaverso: qualquer um que levar adiante a missão de carregar nas costas as responsabilidades de seus poderes, sem se corromper, pode ser um Homem-Aranha.
Mas… aí vem Alan Moore com Watchmen.
O antagonismo de Watchmen perante o Homem-Aranha
Veja bem, o Homem-Aranha do John Romita Sr. foi publicado entre 1977 e 1982. E justamente no ano em que o Escalador de Paredes redefinia o heroísmo na Marvel Comics, a DC Comics contratava um jovem e promissor escritor britânico para reformular algumas propriedades adquiridas com a aquisição da Charlton Comics.
A DC deu carta branca para Alan Moore recriar os personagens da Charlton, mas não imaginava que o roteirista traria uma perspectiva tão cínica e sombria sobre o conceito de heroísmo. Para o escritor, a ideia de salvar o mundo usando poderes que calam qualquer prerrogativa de um ser humano “comum” não passa de uma justificativa para os superseres ficar no comando — ou seja, o heroísmo que Moore estabeleceu em Watchmen destrói o conceito altruísta do Homem-Aranha.
Para Moore, alguém com poderes extraordinários como os superseres da Marvel jamais salvaria gatinhos de árvores ou apanharia tanto do mundo. Watchmen mostra que os poderes que os super-heróis têm os corrompe, torna-os narcisistas, pretensiosos e egoístas demais.
O escritor mostrou que, se você fosse parte do grupo Watchmen, não apanharia tanto do mundo. Pelo contrário, estupraria vietnamitas as próprias colegas de equipe, destilaria maldade e assassinaria qualquer um que discordasse das ideias altruístas do heroísmo estabelecido pelo Homem-Aranha.
Em Watchmen, se você ganhasse poderes, não salvaria o mundo; em vez disso, roubaria bancos e espancaria quem discordasse das teorias da conspiração de Rorschach. A obra de Alan Moore e Dave Gibbon trouxe um complexo contraste sobre a definição de heroísmo, quatro anos após Romita Sr. pendurar as chuteiras.
E o que isso tem a ver com a ligação entre Homem-Aranha e Watchmen?
Quando Homem-Aranha ganhou uma adaptação em 2002, apresentando elementos básicos dos quadrinhos, a Marvel reformulou seu conceito sobre o que seria heroísmo nos cinemas. Veja bem, o Peter Parker de Sam Raimi manteve a caracterização de John Romita Sr., como o personagem trágico e solitário que é derrotado mas nunca se corrompe.
E o que aconteceu justamente nessa época em que o Homem-Aranha atualizou o conceito de heroísmo na era das adaptações de quadrinhos para o cinema? Sim, apenas dois anos depois de Homem-Aranha 3, Zack Snyder seguiu o conceito de Alan Moore em sua adaptação de Watchmen, e desconstruiu o que o “bom-mocismo” de Peter Parker representava, mostrando um grupo de heróis sem o mínimo pudor de praticar assassinato, tortura, incesto, estupro e maldade deliberada.
Não há indícios de que o antagonismo de Watchmen frente ao Homem-Aranha tenha sido planejado. Mas não dá para negar que a coincidência prolongou uma “briga” que estabelece contrastes sobre a redefinição do conceito de herói.