Marvel ensaia chegada de Miracleman em trama que lembra saga da DC
Por Claudio Yuge |
Você conhece o personagem Miracleman (ou Marvelman)? Se disse "sim", sabe que ele tem uma importância histórica muito grande no mercado de quadrinhos, envolvendo uma mudança de olhar sobre os super-heróis e enredos adultos em um período em que os gibis já não eram mais tão “inocentes”. Há também muita briga de bastidores sobre direitos autorais entre artistas famosos, como Alan Moore, Neil Gaiman e Todd McFarlane.
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Se disse "não", já aviso que esse não é um texto para recuperar toda a complexa história do personagem e tudo o que está por trás dele — podemos fazer isso em outro momento. E, bem, na verdade, não importa se você disse “sim” ou “não”, já que vou resumir rapidamente o que aconteceu, apenas para contextualizar o objetivo desta matéria: o de projetar o que a Marvel pretende fazer com Miracleman, pois é algo que pode mexer com as estruturas da editora a partir deste ano.
Marvelman foi criado em 1954 pelo escritor britânico Mick Anglo, para a pequena editora Len Miller & Son. Era a resposta inglesa para o Capitão Marvel da Fawcett Comics. A premissa era bem parecida: Micky Moran, um repórter, após um encontro com um astrofísico, recebeu poderes baseados em energia atômica. Toda vez que ele dizia “Kimota” (“Atomik” ao contrário), tornava-se Marvelman.
Como podem perceber, não há muita originalidade por ali. E até mesmo os personagens coadjuvantes da Família Marvelman lembravam muito os da Família Marvel, com direito a Young Marvelman e Kid Marvelman, nos moldes do que acontecia com Billy Batson e seu elenco de apoio. E, assim como aconteceu com o Capitão Marvel, que, já integrado à DC Comics após a venda da Fawcett Comics teve que mudar de nome para Shazam para evitar problemas judiciais com a Marvel Comics, Marvelman também sofreu alterações e passou a se chamar Miracleman.
A fase de Alan Moore em Miracleman
Miracleman não tinha assim histórias muito brilhantes até 1982, quando um jovem escritor britânico chamado Alan Moore assumiu os roteiros, ao lado dos artistas Garry Leach e Alan Davis (outro nome que faria sucesso no mercado norte-americano anos depois). Só que a versão publicada na revista Warrior era muito mais sombria do que o Marvelman original.
Moran tinha pesadelos sobre sua vida passada como herói e, após redescobrir seus poderes com a palavra “Kimota”, descobriu que Kid Marvelman estava vivo, na forma de um superser psicopata. O que aconteceu depois foi uma desconstrução do super-herói clássico da linhagem do Superman e de Shazam, na forma de aventuras que mais se pareciam tramas de terror psicológico envolvendo criaturas de estatura mitológica.
A trama, que mais tarde tinha os desenhos quase macabros de John Totleben (o mesmo que fez dupla, anos depois, com Moore em Monstro do Pântano), escalou para temas, digamos, muito mais adultos do que no passado. Era muito mais a jornada de corrupção do super-herói do que exatamente sobre heroísmo. Se quiser fazer um paralelo, dá para comparar essa caracterização com o que Watchmen fez em 1986 — lembrando que a fase de Moore em Miracleman durou 16 edições e ficou incompleta, com o final no número 21, em 1984.
Em 1985, após a mudança de nome para Miracleman, pelos motivos já relatados acima, a Eclipse Comics assumiu a publicação nos Estados Unidos e republicou o material colorido. Mas a revista não durou muito tempo. E, mesmo assim, trouxe um olhar nunca antes visto em um “gibi de super-heróis”, influenciando muitos artistas e cativando milhares de fãs — tornou-se cultuada entre os leitores mais vorazes de quadrinhos.
A fase de Neil Gaiman e a treta com Todd McFarlane com Miracleman
Pois bem, como havia muito interesse no personagem, especialmente entre os leitores que descobriram a fase de Alan Moore anos depois da publicação, Miracleman retornou, desta vez pelas mãos de outro britânico que começava a fazer sucesso no mercado norte-americano — justamente pela pegada de terror que imprimia aos seus textos.
Assim, em 1988, Gaiman, que ainda dava os primeiros passos de Sandman na DC Comics, usou o que Moore havia construído para terminar a jornada de Miracleman, juntando também o passado “inocente” do personagem. Assim, ele definiu a “ascensão e queda do herói”, posicionando Moran e sua família nas eras de Ouro, Prata e Contemporânea dos quadrinhos de super-heróis.
O plano era contar essa trajetória em três volumes: The Golden Age, The Silver Age e The Dark Age. Mas, no meio do caminho, a história ganhou capítulos paralelos e, no final das contas, terminou na edição 24. O número 25, com roteiro pronto, nunca chegou às bancas; e a jornada acabou incompleta no período do volume de The Silver Age, em 1994.
Os anos 1990 foram turbulentos para o mercado de super-heróis, e o público mais jovem parecia não se importar com a saga de Miracleman. Além disso, a irregular publicação do título pela Eclipse afastou muito dos fãs, mesmo os mais fervorosos. Assim, o personagem caiu no esquecimento, e só viria a ser notícia no meio da década e no começo dos anos 2000.
Em 1996, Todd McFarlane, que estava no auge depois de sua fase no Homem-Aranha, comprou os ativos da Eclipse pela bagatela de US$ 25 mil, incluindo os direitos de uso de Miracleman. E aí, em 2001, aconteceu o início de uma grande treta judicial: McFarlane usou Miracleman em uma revista do Spawn, capitalizando o personagem como um novo integrante do universo de seu personagem na Image Comics.
Em 2002, Gaiman processou McFarlane pelo uso não autorizado de personagens que ele havia criado em sua passagem pelas tramas de Miracleman. Gaiman estava tão determinado a minar os planos de McFarlane que chegou a criar uma empresa somente para poder acioná-lo judicialmente. Os detalhes exatos sobre as cláusulas de uso são até hoje desconhecidas do grande público, contudo, McFarlane teve que recuar.
Em uma manobra de Gaiman em conjunto com a Marvel Comics, que envolveu até a saga 1602, da Casa das Ideias, a Justiça norte-americana considerou McFarlane como proprietário ilegítimo dos direitos de Miracleman. E, depois de acordos e muita discussão nos bastidores, em 2009, o criador original Mick Anglo, passou a ser o dono oficial dos direitos de Miracleman — vale destacar que McFarlane também cedeu porque sua imagem como artista se desgastou bastante no processo, inclusive entre os próprios fãs do autor.
Assim, depois de tudo isso, a Marvel Comics comprou os direitos de Miracleman junto a Anglo em 2009. E, em 2013, a Casa das Ideias anunciou que Gaiman terminaria seus volumes inacabados e até mesmo revelou uma nova trama assinada por Grant Morrison. Desde então, alguns projetos foram cancelados, entre reimpressões de luxo; e não dava para saber exatamente o que a editora faria com o poderoso personagem.
Isso mudou na semana que passou.
O possível retorno de Miracleman nos moldes de Relógio do Juízo Final
Pois bem, finalmente chegamos ao objetivo do texto, que é projetar a introdução de Miracleman no Universo Marvel. Nos últimos anos, em muitas das sagas que a Casa das Ideias publicou havia a expectativa de que Miracleman apareceria como um “game changer”, um deus, ou algo parecido, capaz de abalar as estruturas da editora.
De tanto apostar na introdução de Miracleman na cronologia do Universo Marvel, muita gente até desistiu. Até que… na surdina, a Marvel deu indícios do que pode acontecer em breve. Primeiro, com a presença do símbolo do personagem em Timeless #1, edição de estreia da minissérie de Kang que deve reposicionar o vilão temporal com o que foi visto na série Loki, do Disney+.
E, em seguida, com o anúncio da edição de luxo Miracleman Omnibus, que reunirá o reboot dos anos 1980 de Alan Moore e vários artistas, bem como as duas primeiras histórias de Miracleman na era da Marvel Comics, de Grant Morrison, Joe Quesada, Mike Allred e Peter Milligan. O lançamento está previsto para setembro de 2022.
Agora, a teoria… O Multiverso Marvel está em voga, graças ao que vimos nas séries WandaVision, Loki e What If… e com as tramas dos filmes Homem-Aranha: Sem Volta para Casa e Doutor Estranho no Multiverso da Loucura. Como a ideia da minissérie Timeless nas HQs é organizar melhor anos de cronologia zoada na editora, Miracleman pode entrar na jogada como um ser capaz de estabelecer ou mudar as regras fundamentais do Multiverso Marvel.
Na DC Comics, os personagens de Watchmen, em especial Doutor Manhattan, foram usados para explicar o “legado roubado” durante os anos do reboot Novos 52, na saga Relógio do Juízo Final. Muita gente (inclusive eu) aposta que a Marvel Comics deva realizar algo semelhante para “consertar” várias das incongruências de décadas de publicação para estabelecer as regras de uma nova era na editora. E mais: seria uma chance de também agregar melhor outras propriedades que a companhia adquiriu ao longo dos últimos anos, a exemplo de Conan, Aliens e Predador.
Somente um personagem tão polêmico, poderoso e esquecido tem essa característica de “ás na manga” para ser usado com tanto impacto e de forma aceitável para essa função na Casa das Ideias atualmente. Claro que não dá para cravar que esse é realmente o plano da editora. Mas, de um jeito ou de outro, preparem-se para abrir alas: Miracleman está chegando à cronologia oficial do Multiverso Marvel.