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Conheça a página silenciosa que estilhaçou os limites das HQs

Por| 28 de Maio de 2023 às 08h10

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EC Comics
EC Comics

Ao folhear um gibi, talvez você nunca tenha pensado nas perguntas que vou elencar aqui. As respostas a elas estão abaixo, e, acredite, podem mudar a forma como você consome quadrinhos. Pega aí: quais são os elementos essenciais que diferenciam a Nona Arte das outras? Como um gênio consegue manipular o espaço e o tempo para você exercitar a criatividade e preencher cada lacuna da narrativa com a sua imaginação? Já percebeu que as boas histórias te fazem escutar sons com os olhos?

As respostas podem ser exemplificadas em uma página criada por Bernard Krigstein, artista plástico que, incomodado com as limitações e padrões dos quadrinhos em 1955, violou os moldes e concebeu uma sequência que revolucionou o gênero. Antes de falar sobre essa obra, é necessário reunir alguns conceitos e contextos que podem oferecer todo o estofo necessário para você ler a linguagem, e não somente textos e desenhos.

Os quadrinhos como uma forma de expressão, com seus elementos específicos, técnicas, tipos e formatos; como um gênero textual híbrido capaz de combinar de forma única a narrativa de tempo e espaço em arte sequencial, nem sempre foram vistos como um sistema estruturado de comunicação. Na verdade, demorou bastante até que fossem respeitados — e até hoje há quem os trate como “coisa de criança”, “cultura inferior” ou apenas um limitado “subgênero” da literatura.

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Em 1955, os quadrinhos já viviam mais de duas décadas de crescente sucesso comercial. Como as empresas queriam lucrar mais rápido e com maior volume, as editoras adotaram um modelo de publicação bastante simples e fácil de imprimir, com produção veloz e de baixo custo. O padrão era colar os diálogos na parte superior de retângulos do mesmo tamanho, como se fosse uma cópia de cada quadro de um rolo de fita de cinema — as ilustrações traziam o básico para dar continuidade à narrativa, com caracterização da ação, dos personagens e dos cenários.

Esse padrão também foi estipulado para que o público-alvo, em sua maioria crianças e adolescentes, pudesse compreender facilmente a progressão da história. Mas o perfil dos consumidores ficou mais amplo e complexo, assim como a própria cultura, o entretenimento e a maneira de contar histórias em todas as mídias.

E aí que se destaca a EC Comics, editora que já mirava outros nichos, com revistas de terror e ficção científica, a exemplo de Tales from the Crypt; e de humor provocativo para uma faixa etária de jovens já barbados, como MAD Magazine. E, claro, também entra em cena Bernard Krigstein, o brilhante artista que, justamente por achar os quadrinhos da época muito simplórios e limitados, impôs uma narrativa iconoclasta.

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Autor da página revolucionária violou as regras porque não gostava de HQs

A EC Comics tinha como pilares dois jovens inconformados, rebeldes, talentosos e vanguardistas: Al Feldstein e Harvey Kurtzman. Em vez de buscar ilustradores que apenas fizessem um trabalho rápido e eficiente, os editores seduziram desenhistas talentosos que tinham forte trabalho autoral e prestígio entre acadêmicos e curadores de galerias de arte. Frank Frazetta, John Craig, George Evans, entre outros, como Bernard Krigstein, foram convencidos a trabalhar em uma mídia pouco reconhecida e que pagava pouco. O maior chamariz era a liberdade que Kurtzman e Feldstein ofereciam, tanto de temas quanto de estilo.

Apesar de poderem explorar terrenos mais amplos, os artistas ainda deviam seguir o padrão de produção, que já tinha uma cadeia de prestadores de serviços e um processo estabelecido para diagramação, compilação, impressão e distribuição. Sair desse esquema seria um tiro do pé, já que a oferta de publicações ficaria menos ágil, mais caro e de menor volume em relação à concorrência.

A limitação da narrativa era algo que incomodava bastante Krigstein, um artista conceituado que via seu trabalho de freelancer nos quadrinhos um “rebaixamento” para sua carreira e para o status de suas obras. Até hoje ninguém sabe muita coisa de toda a vida dele, porque nunca interagiu muito com os outros profissionais do segmento, e até fez questão de não ser relacionado a esse mercado — ele só atuava ali porque precisava da grana mesmo.

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Página que destruiu as limitações das HQs nasceu de uma porrada visceral contra o nazismo

Escrito por Al Feldstein e ilustrado por Krigstein, Master Race foi publicada na revista Impact. Na trama, Carl Reissman, um imigrante alemão que sobreviveu à Alemanha nazista, vai para os Estados Unidos começar uma vida nova. Como a EC Comics explorava vertentes das histórias de mistério com um toque de suspense e terror, havia um elemento de tensão, uma figura enigmática sentada em frente a Reissman.

Em apenas oito páginas, a trama revela que Reissman era um comandante de um campo de concentração que fugiu da Alemanha. O protagonista passa a desconfiar que a figura vestida de preto no metrô se trata de algum sobrevivente do Holocausto, que o perseguiu até os Estados Unidos em busca de vingança.

E é aí que Krigstein mudou tudo o que se entendia por quadrinhos com apenas uma página. Seus traços precisos e consistentes, com uma arte-final que valorizava as cores e o volume dos elementos, oferecia um dinamismo que, pela primeira vez na história da Nona Arte, explorava melhor os espaços em branco entre cada quadro.

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Krigstein, ao receber o roteiro, disse à EC Comics que só faria a história se pudesse mudar a disposição dos quadros, a quantidade e os tamanhos, em uma diagramação completamente incomum para a época. Muito relutante, Kurtzman, que tentou convencer o artista a seguir o padrão, aceitou a exigência porque sabia que estava diante de um gênio.

Liberado para quebrar as regras, Krigstein passou a usar os espaços em branco para forçar os limites do exercício de criatividade de cada leitor. O timing de cada movimento dos personagens e do trem oferecia muito mais elementos para que o leitor pudesse, no “silêncio” entre um quadro e outro, imaginar sons e a execução da ação.

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Ao gerar diferentes tamanhos de retângulos e em maior quantidade, ele também mostrou como acelerar ou diminuir o ritmo de uma narrativa. Além disso, a disposição dos diferentes tamanhos de painéis foi meticulosamente planejada para criar efeitos semelhantes ao de edição e fotografia do cinema, destacando a composição, iluminação, ângulo e perspectivas de narrativa — em certo momento, o protagonista se torna antagonista e vice-versa

A página ainda promove o mistério a partir do “giro de câmera” em uma sequência silenciosa que, em nossa mente, fica extremamente tensa e barulhenta. Para completar, o efeito aplicado durante o atropelamento emite a sensação de alta velocidade. A indiferença dos passageiros e a fria contemplação da figura de preto deixam perguntas no ar: será mesmo que ele era uma ameaça? E a verdadeira razão pela qual Reissman deixou a Alemanha nazista não seria o fato de os horrores do Holocausto terem deixado o ex-comandante do campo de concentração perturbado e paranóico?

Art Spiegelman, expoente do new new journalism nos quadrinhos com Maus, analisou a obra de Krigstein. “As duas camadas de painéis staccato sem palavras que culminam na história tornaram-se justamente famosas entre os literatos de quadrinhos. Krigstein condensa e expande o próprio tempo... A vida de Reissman flutua no espaço como a matéria suspensa em uma lâmpada de lava.”

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Em entrevista à New Yorker, em 1962, Krigstein confirma que o uso extremamente preciso dos espaços em branco foi diagramado para que o leitor interaja e realize um constante exercício de criatividade. "É o que acontece entre esses painéis que é tão fascinante."

Quantas vezes você já viu uma criança chorar ao ver alguém vestido de Mônica ou Cebolinha? Isso acontece porque, embora a narrativa dos quadrinhos siga uma cadeia de eventos comum a todos os leitores, cada um imagina o movimento e a ação entre os quadros em branco de maneira pessoal — ao ver um comportamento e uma voz completamente diferentes das que criaram em suas mentes, os pequenos reagem com estranhamento.

Infelizmente, Krigstein deixou completamente os quadrinhos na década seguinte, trabalhando como artista comercial e professor de arte pelo resto de sua carreira. Mas sua obra influenciou várias gerações de artistas nos anos seguintes, como Jim Steranko, Dave Gibbons, Art Spiegelman, Daniel Clowes, Chris Ware, Frank Quitely, Frank Miller, entre outros — Miller usa técnica semelhante em Batman: O Cavaleiro das Trevas, e até mesmo o nome da terceira parte foi batizada Master Race em homenagem ao gênio.

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Agora, volte ao início e reflita sobre as perguntas do primeiro parágrafo. Talvez, depois de saber como Krigstein contribuiu para que os quadrinhos se tornassem a Nona Arte e deixassem de serem vistos como “coisa de criança”, você passe a ler a linguagem com mais atenção — o que, com certeza, tornará sua experiência muito mais rica.