Análise | A "Mão Invisível do Mercado" e a barbeiragem do Procon com o iPhone 12
Por Rui Maciel | 24 de Março de 2021 às 08h20
Existe muita gente Brasil afora defendendo a tal "Mão Invisível do Mercado", um ser abstrato que, segundo a crença, é infalível na hora de regular preços e serviços. Para muitos, essa entidade suprema não precisa da supervisão do governo ou ser regulamentada de alguma forma.
Bom, como a história já cansou de nos mostrar, essa teoria é uma bobagem, pelo menos em sua forma mais pura. A tal "Mão Invisível do Mercado" pode atuar com liberdade, claro. Mas, como em tudo na vida, isso não quer dizer que ela não precise de limites e regras que estabeleçam até onde ela pode ir sem que prejudique empresas e consumidores que interagem com ela.
Querem um exemplo perfeito da falta que faz uma supervisão adulta sobre a "Mão Invisível do Mercado"? Simples. A crise econômica de 2008, que quase quebrou o sistema financeiro dos EUA (e o mundo inteiro de tabela), quando bancos vendiam ao público produtos em forma de investimentos de nomes complicadíssimos e cujo lastro eram empréstimos hipotecários de altíssimo risco. E quando eles não foram pagos, criou-se um efeito dominó que arrastou vários bancos gigantescos para uma situação de insolvência.
Essa farra - que depois foi batizada de "Crise do subprime" - criou a pior crise financeira desde o crash de 1929. E ela foi causada porque o governo dos EUA não exercia nenhum tipo de supervisão séria em cima do sistema bancário do país. Durante anos, os bancos faturaram muito vendendo produtos de investimento que nem eles mesmos entendiam bem o que eram. Deu no que deu. E tudo devido à falta de um adulto para ficar de olho na "Mão Invisível do Mercado".
A "Mão Invisível do Mercado" se comporta quando tem uma boa babá
Mas se o exemplo acima não te convenceu, sem problemas. Eu te dou outros dois onde a "Mão Invisível do Mercado" abusou, mas, dessa vez, o governo entrou em ação e foi bem.
Em abril de 2016, a prefeitura de Berlim proibiu o aluguel de apartamentos e casas por meio do Airbnb. Tudo porque os proprietários de imóveis preferiam locá-los para uso de curta duração aos turistas, já que faturariam muito mais. Acontece que isso acabou encarecendo o preço do aluguel em mais de 60% na capital alemã, prejudicando os cidadãos que moram - ou planejavam morar - por lá.
Logo, quem burlasse a proibição e alugasse seu apartamento via Airbnb podia ser multado em até 100 mil euros. Resultado: no final de dezembro daquele mesmo ano, após o decreto, o número de imóveis anunciados para aluguel na plataforma caiu 40%, 2.500 apartamentos foram colocados de volta ao mercado de locação e o preço dos alugueis começou a cair. E o Airbnb só pôde voltar a operar normalmente na cidade quase dois anos depois e sob regras mais rigorosas.
Outro bom exemplo de como a "Mão Invisível do Mercado" se comporta bem quando tem uma boa babá: na Califórnia, cansados de ver os motoristas trabalhando em regime de precariedade, o poder público local pressionou na Justiça para que apps como Uber, Lift e DoorDash (de entrega de compras) passassem a considerar os condutores como funcionários dessas empresas, com todos os direitos trabalhistas.
Como registrá-los sob a "CLT americana" inviabilizaria o modelo de negócio desses apps, eles finalmente se organizaram e criaram a Proposta 22. Essa medida isenta as empresas das leis trabalhistas californianas, mas, por outro lado, cria um fundo para oferecer um piso salarial e benefícios como seguro-saúde aos condutores, ainda que eles continuem sendo considerados trabalhadores independentes.
A medida acabou sendo aprovada pela população do estado norte-americano nas eleições presidenciais de novembro do ano passado. E mesmo contrariando as autoridades públicas locais, chegou-se a um meio-termo razoável onde os motoristas terão um certo suporte para desempenhar as suas funções.
E ao citar os dois exemplos bem-sucedidos de como a "Mão Invisível do Mercado" se comporta bem quando tem uma "babá" governamental eficiente, o texto agora tem um plot twist: vamos falar o que acontece quando o poder público pesa a mão e interfere onde não deveria no livre mercado.
Mais especificamente, estamos falando do episódio envolvendo o Procon-SP e os carregadores (ou melhor, a falta deles) nos iPhones 12.
Procon-SP metendo o bedelho
Se você não acompanhou a história um resumo rápido: em outubro do ano passado, quando a Apple lançou os novos iPhones 12, ela avisou durante o evento de apresentação que eles não viriam com o carregador na caixa (apenas o cabo USB-C Lightining), nem o fone de ouvido.
O objetivo, segundo a empresa, é reduzir as emissões de carbono, evitar a mineração e o uso de materiais preciosos, bem como diminuir a quantidade de lixo eletrônico. Além disso, os carregadores de versões anteriores do smartphone eram compatíveis com os novos modelos, logo, os usuários não teriam problemas em usá-los. Apenas quem estivesse comprando um iPhone pela primeira vez - ou tivesse modelos muito mais antigos do aparelho - precisariam desembolsar um extra pelo componente. E sempre lembrando: a Apple avisara desde o lançamento ao mundo inteiro que seus novos celulares não teriam o acessório.
Até onde se sabe, essa medida não causou grandes dores de cabeça para a Maçã nos mercados onde ela atua - inclusive, as vendas do smartphone mundo afora vão muito bem, obrigado. Exceto, claro, no Brasil. No final de outubro do ano passado, o Procon-SP não aceitou a ausência do carregador nos aparelhos e notificou a empresa, dando um prazo de 72 horas para que ela respondesse a cinco perguntas:
- Quais razões fundamentam a decisão comercial da empresa?
- Qual será o custo dos dispositivos ofertados em separado?
- O que será disponibilizado para aquisição do consumidor para que seja efetuada a recarga e qual o tempo de previsão de carregamento do aparelho com o novo dispositivo?
- O consumidor tem alternativa para utilização de outros dispositivos com a mesma função?
- Como se dará o atendimento em garantia, já que os itens serão comprados em períodos distintos?
A justificativa dada pelo órgão de defesa do consumidor, segundo Fernando Capez, diretor-executivo do Procon-SP, é que “a venda separada do aparelho e do carregador é uma inovação que pode configurar prática abusiva, pois um precisa do outro para ter utilidade”. Além disso, no começo de dezembro último, Capez ainda afirmou que "é incoerente fazer a venda do aparelho desacompanhado do carregador, sem rever o valor do produto e sem apresentar um plano de recolhimento dos aparelhos antigos, reciclagem etc".
Com isso, ainda em dezembro, o Procon anunciou que exigiria da Apple o fornecimento do acessório gratuitamente aos clientes que comprarem o iPhone 12 (e também de modelos anteriores, o que não faz sentido, já que os mesmos trazem o item).
A Apple que, convenhamos, nunca foi uma empresa das mais diplomáticas, respondeu ao questionamento do Procon-SP com uma nota lacônica, repetindo aquilo que dissera de forma pública quando lançou o iPhone 12: "A decisão de retirar o acessório teve como objetivo reduzir a emissão de carbono e o lixo eletrônico", pois, segundo a fabricante, os carregadores incluídos na caixa não eram utilizados já que "existem muitos desses dispositivos no mundo".
Logo, a falta de tato da Apple, somado ao fato de que Samsung entrou em acordo com o Procon-SP para fornecer gratuitamente o carregador em sua recém-lançada linha Galaxy S21 (que também vem sem o componente) se o consumidor assim quisesse, colocaram a Maçã de vez na mira da entidade.
E o resultado saiu caro: na última sexta-feira (19), o Procon-SP multou a Apple em R$ 10,5 milhões por supostas práticas abusivas. No anúncio da autuação, a entidade incluiu outros motivos para justificar o valor elevado, como publicidade enganosa sobre a resistência à água dos iPhones 11 Pro e também sobre falhas em alguns recursos dos aparelhos depois da atualização do sistema, além de cobrança indevida no cartão por manutenção e custos de envio.
Mas o fato é que o grande gatilho para a punição foi o (ou a falta de) posicionamento da Maçã em relação à ausência do carregador nos iPhones 12.
E por que a "babá" falhou ao cuidar da "Mão Invisível do Mercado" nesse caso do iPhone 12?
Por um motivo simples: desde o começo, a Apple nunca omitiu que não incluiria o carregador na embalagem de seus novos iPhones. Ainda que as justificativas de sustentabilidade da empresa não batam muito com a realidade (conforme você pode ver nesta matéria), ela sempre jogou limpo: não incluiria o item junto aos aparelhos, ponto e acabou. Sem exceções. Se o usuário já tivesse um iPhone 11 ou iPhone 10, ótimo, era só reaproveitar o acessório. Se não tivesse, que comprasse o item à parte, original ou genérico. E vida que segue.
O fato é que a empresa não enganou ninguém e agiu de forma transparente - gostemos da medida ou não (e a maioria não gostou). Além disso, ela foi autorizada pela Anatel a vender seus iPhones 12 com a ausência do carregador. Se existe um órgão que poderia barrar essa prática era a Agência Nacional de Telecomunicações. E não o fez
Some-se isso ao fato de que essa punição do Procon-SP a Apple abre um precedente perigoso: o de que toda empresa precisará pedir a "benção" ao órgão sempre que tiver de lançar um produto e se certificar de que ele atenda aos caprichos da entidade antes de chegar ao público. Mesmo que não tenha nada especificamente ilegal ou abusivo e que fora previamente aprovada pelos órgãos responsáveis - como foi o caso do iPhone 12. Afinal, sempre repetindo: a Apple não enganou ninguém ao não incluir o carregador nos seus novos smartphones. Ela avisou antes e foi autorizada a vender nesse formato. Mas o Procon-SP achou que ali tinha um problema porque...bom, porque sim.
Em resumo, dessa vez, ao contrário dos exemplos do início dessa análise, a "babá" pisou na bola ao supervisionar a "Mão Invisível do Mercado" que tanto falamos. Afinal, é o governo se intrometendo onde não deve e tratando o consumidor como um ser incapaz de pensar se vale a pena ou não comprar um determinado produto. Se ele acha que não vale a pena gastar entre R$ 6 mil e R$ 12 mil em um smartphone que não traz um carregador, ótimo, é direito dele. Ele pode optar por outro modelo, de outra marca e que traga o acessório. Ou pode reclamar junto a Apple.
Mas não é papel das autoridades públicas dizer a uma empresa privada como deve ser o seu modelo negócios e o que ela deve oferecer ao público. Se ela tem essa liberdade de mercado prevista em lei, que assim seja. O que não pode é mudar as regras do jogo com ele em andamento. Como ocorreu nesse caso do iPhone 12.
O Procon-SP tem um histórico de ótimas iniciativas na defesa aos direitos do consumidor em diversas frentes. Mas isso não o livra de falhas. E, dessa vez, a entidade pisou na bola.
Vamos ver o que vem pela frente nessa novela...