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The Last of Us é um jogo de terror?

Por| Editado por Bruna Penilhas | 20 de Setembro de 2022 às 15h30

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Divulgação/Sony
Divulgação/Sony

Oficialmente, The Last of Us (assim como sua sequência e o recente remake) é categorizado pela Sony como um game de ação e aventura. Levando em conta a experiência e também sua produtora, a Naughty Dog, fica fácil traçar uma relação direta com Uncharted, principalmente no que toca o trabalho com os cenários e o próprio gênero citado. São raízes, sem dúvidas, mas que também são compartilhadas com as do Survival Horror.

Há quem diga que este é um estilo separado, enquanto outros o colocam em uma caixa única, a do terror, ao lado de outros tantos expoentes do gênero, algo que, pessoalmente, eu discordo. Não se trata apenas de sustos, criaturas ou cenários escuros — algo que, inclusive, The Last of Us tem de sobra —, mas de criar uma atmosfera que deixa o jogador aterrorizado e tenso. E isso também acontece durante quase todo o game da Naughty Dog, principalmente em uma primeira experiência.

Apenas levando isso em conta, devo confessar que nunca havia pensado em outro gênero para a franquia, que não o terror, até que essa discussão surgiu em uma reunião com a equipe de games do Canaltech.

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Definir é limitar, como diriam as piores descrições do Tinder, mas a verdade é que existem mais do que apenas citações e referências ao gênero em The Last of Us, para que ele seja considerado como um expoente; ao mesmo tempo, não está errado quem o chama de jogo narrativo ou de ação, já que tais elementos também formam a espinha dorsal da obra.

Vamos falar de Survival Horror para que as coisas se encaixem ainda melhor e, mais especificamente, sobre algumas das bases fundamentais desse estilo que, ao contrário do que muitos pensam, não se baseia apenas em zumbis ou criaturas com cabeça de pirâmide.

Não são as criaturas, especificamente, que criam a ambientação, mas sim a forma como o jogador é induzido a lidar com elas, em um contexto que também envolve os cenários em que a ação ocorre, a quantidade de recursos disponíveis, as mecânicas de jogabilidade e até o contexto narrativo em que a batalha — ou a possibilidade de fugir dela — está inserida.

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Para isso, volto a uma das minhas publicações preferidas sobre o tema: a compilação Horror Video Games: Essays on the Fusion of Fear and Play.

Publicada em 2009 e inédita no Brasil, a obra editada por Bernard Perron, professor de estudos em cinema e games da Universidade de Montreal, no Canadá, reúne 14 estudos sobre as técnicas usadas pelos desenvolvedores de Resident Evil, Silent Hill, Phantasmagoria e até Castlevania e Diablo para não apenas assustar os jogadores, mas também envolvê-los nos títulos e passar uma sensação constante de ameaça e impotência, por mais equipado que a gente esteja.

Um cachorro, uma janela, um estalador e um prédio caindo aos pedaços

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O começo de The Last of Us é devastador. Entramos no game controlando Sarah, filha do protagonista Joel, e observamos pelos olhos da garota o começo do fim do mundo. Isso vale não só para o planeta como também para o próprio personagem principal, que vê tudo ruir logo nos primeiros dias da epidemia de um fungo que transforma as pessoas em seres incrivelmente violentos — ou será que já éramos assim e o Cordyceps, no fim, só intensificou o processo?

Um salto temporal de décadas acontece e reencontramos Joel e o mundo já acostumados com a contaminação, mas a gente não. Enquanto ele e sua parceira Tess falam calmamente sobre contrabandos, trafegam com tranquilidade por zonas devastadas e encerram desafetos com um tiro na testa, ficamos nos perguntando o que, exatamente, está acontecendo, algo que o jogo nos mostra na forma de combate contra humanos e criaturas como os Corredores e os Estaladores.

É sobre o momento em que estes últimos aparecem que surge uma das bases fundamentais do Survival Horror. Até ali, o jogador já aprendeu a jogar e entendeu que os recursos são escassos e devem ser contados — algo belamente evidenciado pelo peso dos tiros e o fato de sempre termos poucas unidades de itens, entre outros aspectos. Dá até para ficar confortável, depois de enfrentar tantos humanos, transformados ou não, até que a Naughty Dog nos apresenta um dos monstros mais perturbadores de The Last of Us, logo depois de um susto com uma dupla de policiais e antes de nos embrenharmos em um prédio que parece prestes a desabar.

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Surge ali uma criatura cujo formato distorce tudo o que havia sido aprendido sobre o título até aquele momento. Socos, por exemplo, não servem mais como medida de economia de munição, enquanto os tiros são eficazes, mas também atraem as criaturas para cima do jogador. Com isso, vem também um tenso sentimento de antecipação, afinal de contas, o jogo ainda está no começo. O que mais vem por aí para matar Joel e Ellie das formas mais grotescas possíveis?

É um elemento semelhante ao encontrado no primeiro Resident Evil, em um dos sustos mais clássicos do mundo dos games, quando um cachorro invade o corredor através de uma janela. O primeiro inimigo surge atrás do personagem e, caso o jogador decida fugir para a frente, é encurralado por um segundo, que fecha a rota de fuga. Só resta lutar e perceber que os zumbis comuns não são, nem de longe, a maior ameaça daquela mansão.

Entra aqui outro aspecto que sempre aparece na série da Capcom, que costuma perverter elementos conhecidos sempre que o jogador começa a se sentir mais confortável.

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No primeiro jogo, por exemplo, isso acontece de forma feroz quando os protagonistas voltam à mansão, agora recheada de Hunters, ou então em Silent Hill, quando passamos para a versão amaldiçoada da cidade e exploraramos os mesmos cenários em um formato diferente e com novos oponentes. A mensagem é clara: você nunca está seguro e jamais deve achar que está no controle da situação.

Acredita ter aprendido a lidar com os Estaladores? Que tal enfrentar um Baiacu, capaz de atacar à distância e te matar com um único golpe? Está se sentindo confiante com o inventário cheio de bombas, munição e itens de cura? Tome um acidente de carro assustador e dezenas de bandidos em sucessão para enfrentar. Ao final do game, também tem tudo, um atrás do outro, em uma das sequências mais tensas de The Last of Us. Quem disser que não ficou assustado, provavelmente, está mentindo.

Variedade, clausura e direcionamento

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Ainda que seja um jogo recente, com mecânicas modernas, dá para enxergar The Last of Us como uma experiência baseada nos estilos antigos, em que os jogos tinham fases que vinham uma após a outra. No game da Naughty Dog, existem os momentos de exploração, os de combate contra humanos, as cutscenes que contam a história, as mudanças de estações de tempo e, claro, os vários encontros com infectados.

Ir para a frente, o tempo todo, é o único caminho possível e, caso se veja despreparado em uma situação de confronto, não é possível retornar para procurar mais munição e suprimentos. The Last of Us, às vezes, permite a furtividade; em outros momentos, detona a fagulha do conflito. Tudo o que o jogador pode fazer é torcer para estar preparado para a próxima batalha e se preparar para ela, nos cenários anteriores, mesmo que não saiba exatamente o que espera à frente.

Diferentes mecanismos também são apresentados ao longo do game, com bombas de estilhaços que servem como minas de aproximação, molotovs para dano de área e armas de uma e duas mãos com diferentes níveis de intensidade e disponibilidade de munição. Há espaço para que o usuário escolha suas preferidas, mas, ao mesmo tempo, ele também faz isso sabendo que, em determinados momentos, terá que trabalhar com o que tiver em mãos.

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É uma piada recorrente entre os fãs do Survival Horror: economizar tudo o que for possível para terminar o jogo com o inventário lotado de itens. Aquela bomba pode soar uma boa contra um grupo de três humanos, mas o que nos espera depois? Será que tem um Baiacu a caminho e ela pode ser essencial? Vale a pena usar o rifle para acabar com infectados de longe, levando em conta que essa é uma das armas mais fortes do game e sua munição pode ser útil contra um boss? São perguntas que estão sempre na cabeça de quem joga.

Mesmo em cenários abertos, nem sempre há uma grande margem para manobra, já que a amplitude também traz consigo uma maior quantidade de inimigos. Não é fácil pensar estrategicamente com uma horda gritando atrás de você, querendo seu sangue, enquanto o peso da mira e a cadência dos tiros quase nunca favorece uma abordagem ao estilo Rambo contra os oponentes.

Essa variação tira o jogador da zona de conforto e o faz sempre lançar dúvida sobre a própria capacidade e preparo. Acontece, por exemplo, no recente Resident Evil Village, quando, na porção final do jogo, os licanos tradicionais são substituídos por inimigos protegidos por armaduras e que atacam com lâminas afiadas, colocando em xeque tudo o que o jogador aprendeu até ali sobre suas armas e preferências.

Planos podem sair rapidamente do prumo, enquanto o jogo apresenta situações que colocam os jogadores no limite. Na sequência, estamos de novo em uma zona tranquila, na qual Joel pode andar e Ellie, contar suas piadas. Porém, sempre há um cadáver ou poça de sangue para lembrar a todos, personagens e jogadores, que o presunto da próxima sala pode muito bem ser você.

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Ninguém está seguro

Como se não bastassem as criaturas, os bandidos e um mundo devastado, Joel e Ellie ainda têm de lidar com suas próprias emoções e as dos outros. E, rapidamente, percebem que qualquer ajuda é temporária, já que, no apocalipse como hoje em dia, todo mundo está lutando as suas próprias batalhas e não dá para sair demais de rota para auxiliar os outros.

Mesmo a garota, que acompanha o protagonista durante a jornada, tem suas limitações — ela não auxilia no combate e, quando aparece, tem ataques fracos e que quase nunca resolvem a fatura. Mesmo os disparos de Tess, Bill ou Tommy têm potencial reduzido em relação ao do jogador, que sente todo o peso da sobrevivência e da progressão em suas costas e na contagem decrescente de recursos em seu inventário.

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Essa efemeridade cria uma sensação de solidão e impotência que, novamente, deixa o jogador sempre ligado; mesmo quando acompanhado, ele sabe que essa pode ser uma situação temporária. Quando o pior acontecer, ele não terá ninguém para contar a não ser si mesmo. Como dito no tópico anterior, não dá para voltar e, muitas vezes, também não é possível fugir para a frente, só fazer o possível com o que se tem em mãos para continuar existindo.

O isolamento é citado nos estudos organizados por Perron como uma das bases do Survival Horror e um dos terrores fundamentais da condição humana. É justamente por isso que, nos games e filmes, ele é tão eficaz; a sensação de solidão, em The Last of Us, é constante e, mesmo quando estamos seguros, não dá para afastar uma inquietude absolutamente sombria.

O game da Naughty Dog também transforma um cacoete comum da era moderna de videogames. As mortes, hoje, não têm tanta importância quanto nos games do passado, em que ver a tela de Game Over significava ter de começar de novo. Ainda que Joel retorne próximo do ponto de fracasso, isso nunca acontece sem uma cena grotesca e violenta, que, com certeza, o jogador não vai querer ver se repetindo.

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Referências e figurões

A ideia de que The Last of Us bebe fortemente nas bases dos terrores antigos e recentes vem, inclusive, dos próprios desenvolvedores. Em entrevista antes do lançamento do primeiro game da série, o designer Ricky Cambier deixou claro que o intuito por trás do game era focar na tensão da mistura entre ação e sobrevivência, em um mundo perigoso e no qual o chumbo pesado não é uma opção.

Em entrevista ao extinto site MMGN (via NeoGAF), ele cita Resident Evil 4 como uma referência dos desenvolvedores para isso, ao lado de Ico, no que toca à construção de cenários e personagens. Entretanto, a ideia sempre foi fazer algo único e focado no universo pós-apocalíptico brutal e impiedoso que é, por si só, um dos aspectos mais ameaçadores e tenebrosos do título.

Dá para dizer que a Naughty Dog conseguiu. Entre ação, aventura e Survival Horror, The Last of Us acumulou mais de 250 prêmios de melhor jogo no ano de seu lançamento, 2013, enquanto a sequência, The Last of Us Parte II, fez o mesmo em 2020, com mais de 320 vitórias. Recentemente, o game original retornou em nova forma comThe Last of Us Part I, exclusivo para o PlayStation 5.