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Um aperto de mão no espaço: o legado da missão conjunta Apollo-Soyuz

Por| 06 de Agosto de 2020 às 15h24

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NASA/Davis Meltzer
NASA/Davis Meltzer

Um dos marcos da Guerra Fria que ocupa nosso imaginário até os dias de hoje foi a Corrida Espacial. A competição entre os astronautas americanos e os cosmonautas soviéticos tinha raiz na disputa territorial entre as duas grandes potências, e tudo isso inevitavelmente mudou a nossa relação com o espaço.

E, em meio a tanta rivalidade, veio um respiro: a missão conjunta Apollo-Soyuz - isso, claro, na versão da NASA; no lado da União Soviética, Soyuz vem à frente. Seja a ordem que for, o plano passava pela diplomacia política e ainda atendia a interesses científicos.

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Americanos, a essa altura, contavam com pilotos talentosos e tecnologia avançada para comunicação a longa distância. Os soviéticos, por sua vez, tinham enorme sucesso com automação, além de serem pioneiros em longas jornadas no espaço. Ou seja: ambos os lados tinham muito a aprender nesse contato. E, para selar o que poderia ser o fim da corrida espacial, um aperto de mão mais do que simbólico.

A perspectiva era quase inimaginável e, à época, chegou a ser controversa, com direito a um editorial do New York Times se posicionando contra a missão. Devido à maneira como a União Soviética controlava as informações, contudo, não se sabia muito sobre a maneira como essa missão foi encarada por lá. Ao menos até os dias de hoje.

Ao longo dos últimos anos, a Roscosmos, agência espacial russa, vem divulgando diversos documentos sobre seus primeiros projetos, lançando luz sobre um passado mantido sob muito sigilo. Entre as missões que podemos entender melhor está a Apollo-Soyuz, e essa nova visão comprova que, mesmo que a corrida espacial tenha acabado de forma simbólica, as tensões ainda permaneciam muito vivas.

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Uma trégua pelo progresso

A ideia de cooperação, ainda que improvável, não era nova. Ao longo das décadas de 1950 e 1960, Estados Unidos e União Soviética chegaram a ensaiar aproximações para cooperação científica, especialmente no que dizia respeito à exploração espacial, mesmo que a Guerra Fria continuasse sendo no mínimo um grande empecilho.

Foi apenas nos anos 1970 que esse diálogo pôde avançar, quando as duas superpotências começavam encontrar certa dificuldade em superar seus limites, depois de grandes avanços. Enquanto os americanos tiveram sucesso em enviar o homem à Lua, os cosmonautas russos entendiam como ninguém operações na órbita da Terra.

Outros fatores, de ordem política, também pesaram no estabelecimento desse acordo: a guerra do Vietnã entrava em sua reta final, com resultados que não ajudavam em nada a moral dos Estados Unidos e, a essa altura, os gastos com a expansão do poderio militar americano e soviético eram tremendos. Uma trégua não traria apenas a vantagem da colaboração. Seria um respiro muito bem-vindo para ambos os lados. A Apollo-Soyuz é parte de uma série de medidas que eventualmente contribuiriam com o fim da guerra, como acordos sobre armamentos nucleares e um alívio geral das tensões políticas.

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A missão aconteceu em 17 julho de 1975, apenas um dia depois do sexto aniversário da primeira ida do Homem à superfície Lua, cortesia da Nasa. Foram necessários cinco anos de negociações e preparações até que as duas espaçonaves decolassem em lados praticamente opostos do mundo, seja no sentido literal ou político. Mas, antes que os nomes de Apollo e Soyuz se tornassem um só nas páginas da história, alguns entraves cruciais tiveram que ser vencidos.

Mantendo as cartas na manga

Não é novidade que as operações da NASA tinham um forte apelo midiático. Transmissões ao vivo, coletivas de imprensa e muito mais: era parte fundamental do processo alavancar a imagem de astronautas como heróis nacionais e, consequentemente, alimentar o patriotismo construído em torno da corrida espacial.

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Na União Soviética, a situação era bem diferente. Ainda que ambas as superpotências guardassem seus segredos, o lado soviético dessa disputa tratava toda informação com sigilo absoluto. Mesmo os aspectos mais básicos de seu programa espacial, como planos futuros, bases de lançamento e falhas não eram divulgados ao público. E se o sigilo era tão importante quando se tratava apenas do povo russo, a entrada de americanos no projeto era por si só um problema de proporções únicas.

Em 1970, uma delegação vinda diretamente dos Estados Unidos chegou a Moscou para apresentar os planos iniciais para a missão. Dois anos mais tarde, O Projeto-Teste Apollo-Soyuz foi oficialmente criado. Nesse meio tempo, além de dar conta de sua parte do projeto, os soviéticos tiveram também que descobrir uma forma de lidar com a presença constante de americanos sem revelar segredos militares, mas ainda mantendo as portas abertas. O malabarismo empregado evidencia quão frágil era o conceito de trégua à época.

Os americanos exigiam, com razão, uma série de informações-chave que seriam cruciais no desenvolvimento do projeto; os preparativos também envolveriam visitas de representantes da NASA às instalações soviéticas. Houve um esforço do comando soviético para tornar informações mais acessíveis, mas havia um limite. E limite algum daria conta de um centro de missão aberto aos americanos e à imprensa durante a missão.

A solução encontrada? Criar um centro de controle inteiramente novo em Kaliningrado, hoje Koroliov, cidade-satélite de Moscou. Do espaço de movimentação até a lista de funcionários, tudo que teria contato direto com os americanos era cuidadosamente selecionado e isolado, de forma a garantir que nenhuma informação que não fosse estritamente ligada à missão Apollo-Soyuz vazasse.

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Outra questão crucial que surge nos documentos revelados pela Roscosmos são os constantes atrasos nos preparativos pelo lado soviético. Havia um sentimento geral de ansiedade, um temor de alguma falha viesse a ocorrer, humilhando a União Soviética no cenário internacional. Nos anos de 1973 e 1974, vários componentes da Soyuz e de seu veículo de lançamento passaram por atrasos.

A Apollo-Soyuz também marcou a primeira transmissão ao vivo de um lançamento espacial na União Soviética. Isso também era uma questão de imagem: era óbvio, afinal, que os americanos transmitiriam o lançamento ao vivo; a perspectiva de ficar para trás, fosse qual fosse o quesito, era impensável.

O improvável acontece

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Tensões à parte, no dia 15 de julho de 1975, as cápsulas Soyuz e Apollo foram lançadas, com um intervalo de poucas horas entre elas. Dois dias mais tarde, elas se encontraram a mais de 220 quilômetros da superfície terrestre.

“A Soyuz e a Apollo estão apertando as mãos agora.” Foi assim que Alexei Lenov, renomado cosmonauta russo, definiu a acoplagem das cápsulas. Um pouco mais tarde, ele mesmo teve a oportunidade de apertar a mão de Tom Stafford, em mais um pequeno gesto extremamente humano que entrou para a história da exploração espacial.

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Por dois dias, astronautas e cosmonautas tiveram que aprender a trabalhar juntos, transitando entre naves e desenvolvendo cinco experimentos científicos conjuntamente. Os primeiros momentos, contudo, foram marcados pela dificuldade de comunicação: cada grupo preferia falar apenas em sua própria língua, mas felizmente logo se notou que usar os dois idiomas facilitava a compreensão.

Segundo Vance Brand, um dos astronautas americanos, “nós pensávamos que eles eram bem agressivos e… eles provavelmente achavam que nós fôssemos monstros. Mas superamos isso logo. Quando você tem que trabalhar com pessoas que estão na sua mesma área de atuação, e você passa pouco tempo com elas, ora, logo fica claro que elas também são humanas.”

O trabalho conjunto desses profissionais permitiu que suas respectivas agências acumulassem novos conhecimentos, em um legado que nos acompanha até hoje. Em um dos experimentos científicos, foram testados os efeitos de baixa gravidade sobre o desenvolvimento de ovas de peixe. Em outro, um eclipse solar artificial foi simulado, usando-se a Apollo para bloquear o Sol enquanto os cosmonautas aproveitavam para fotografar a corona solar.

Os relacionamentos, processos e tecnologias envolvidos na Apollo-Soyuz contribuíram diretamente com programas como Shuttle-Mir e o estabelecimento da Estação Espacial Internacional.

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Um futuro de (certa) paz

As cápsulas passaram apenas dois dias conectadas, de 17 a 19 de julho. No dia 21, a Soyuz retornou à Terra, enquanto a Apollo permaneceu em órbita até o dia 24. Um pequeno passo para a paz havia sido dado, mas a tensão geral da Guerra Fria ainda era mais forte. Depois da missão, a NASA só foi enviar seus astronautas ao espaço novamente na década de 1980. Já a Soyuz continuou na ativa pela União Soviética.

Uma nova cooperação entre os dois países só voltou a acontecer em 1992, quando se começou a delinear os planos para o programa Shuttle-Mir (envolvendo os ônibus espaciais da NASA e a estação espacial russa Mir). Curiosamente, com o fim do programa dos ônibus espaciais, astronautas americanos passaram a ter de contar com as cápsulas Soyuz para viajar para a Estação Espacial Internacional, o que aconteceu em 2011. E mesmo hoje, com quase três décadas nos separando do fim da Guerra Fria e, ainda assim, tensões recorrentes surgindo entre Estados Unidos e Rússia, os dois países continuam fazendo jus a seu histórico de competição simultânea à colaboração.

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Fonte: The Space Review, Astronomy Magazine, NASA