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Precursor das fake news: a influência de Guerra dos Mundos sobre as nossas vidas

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Domínio público
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A versão acima é a brasileira, realizada em 2018, quando a original completava 80 anos de idade. Foi no dia 30 de outubro de 1938, três anos antes de lançar Cidadão Kane — filme que mudaria a história do cinema e sedimentaria aspectos da linguagem de sua arte — que Orson Welles causou um pânico generalizado. A bordo da rádio Columbia Broadcasting System (a CBS), Welles interrompeu a programação musical diária para falar sobre uma invasão de marcianos.

Acontece que, claro, tudo não passava de uma dramatização, de uma peça de radioteatro — entretenimento que era comum no Brasil, onde eram transmitidas as radionovelas. Mas a notícia surgia em tom de urgência, como uma “edição extraordinária”, o que transformou aquela clara ficção em realidade para parte dos ouvintes e fez com que a CBS batesse a concorrente National Broadcasting Company (NBC).

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Aquela intervenção durou somente uma hora, mas foi o suficiente para que boa parte dos que escutavam tomassem os relatos da chegada de centenas e centenas de marcianos em Nova Jersey, especificamente na cidade de Grover’s Mill, como verdadeiros. Não demorou para que o terror se instalasse nos EUA — e isso em uma época sem WhatsApp ou redes sociais.

Welles não podia ser eximido de culpa. Seu trabalho como produtor, roteirista, diretor, narrador e personagem desse evento foi inteiramente realizado em formato jornalístico, do jeito exato que os ouvintes estavam acostumados. Em uma hora, como dito, aquele jovem de 23 anos de idade estava repassando ao seu público um programa completo: de reportagens externas a gritos de pânicos em meio aos sons da suposta invasão; de opiniões de especialistas aos comentários de autoridades. Tudo, obviamente, previamente escrito, inclusive as palavras emocionadas de repórteres.

Por outro lado, de acordo com os pesquisadores Jefferson Pooley e Michael J. Socolow, não somente a história capitaneada por Welles era ficção, como o próprio pânico que ela teria causado não passa de um mito. Em artigo publicado em 2013, intitulado The Myth of the War of the Worlds Panic, Pooley e Socolow chamam a ocasião de lenda e tocam em pontos que podem justificar a persistência dessa falsa memória.

Mas de onde isso tudo surgiu?

O episódio, que fazia parte da antológica série The Mercury Theatre on the Air, foi levado ao ar como parte do Halloween da emissora de rádio e tinha trilha sonora musical regida por Bernard Herrmann, parceiro do mestre do suspense Alfred Hitchcock. E não se tratava de uma obra original: era nada mais e nada menos do que a adaptação de A Guerra dos Mundos, obra literária escrita por H. G. Wells e publicada por inteiro pela primeira vez em 1898.

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O romance de ficção científica de Wells, que, em 1897, já havia sido exposto em capítulos separados pela Pearson’s Magazine, conta, exatamente, a história de uma invasão da Terra por marcianos inteligentes. Possuidores de máquinas assassinas (os Tripods) e utilizando raios carbonizadores, os alienígenas do livro de Wells são verdadeiros conquistadores e já foram levados ao cinema algumas vezes — na última, de 2005, dirigidos por Steven Spielberg e com Tom Cruise como protagonista.

Na história original, os marcianos, após tanto extermínio, acabam sucumbindo a uma bactéria. Sem imunidade para conter a infecção, os aliens começam a morrer gradativamente: toda aquela vida aparentemente tão evoluída para cruzar o espaço sendo derrotada por seres microscópicos. Os enormes até então desconhecidos para os humanos são dizimados por microorganismos invisíveis a olho nu.

O impacto no século XX

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Na época, a CBS fez uma estimativa de que a transmissão de Welles foi escutada por mais ou menos seis milhões de pessoas. O problema, porém, é que metade ou mais sintonizaram na rádio após a introdução que alertava se tratar do radioteatro semanal da emissora. Pelo sobrecarregamento das linhas telefônicas e pela aglomeração nas ruas do estado de Nova Jersey, calcula-se que, pelo menos, meio milhão de pessoas tiveram certeza de que aquilo se tratava de um perigo real.

Para Pooley e Socolow, tudo não passou de falsa histeria criada pelos jornais impressos. Motivados pelo desvio para o rádio de investimento em publicidade durante a Grande Depressão, os editores, por exemplo, do New York Times, sensacionalizaram o tal pânico para tentar provar aos anunciantes que as administrações das rádios não era confiáveis, além de serem irresponsáveis.

A partir de um editorial batizado de Terror by Radio, o NYT foi terminantemente contra o entrelaçamento de ficção com notícias, relatando o problema ético de oferecer contações de histórias da mesma maneira que eram oferecidas notícias verdadeiras. O texto dizia: "A nação como um todo continua a enfrentar o perigo de notícias incompletas e mal compreendidas em um meio [o rádio] que ainda precisa provar [...] que é competente para realizar o trabalho jornalístico."

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A verdade, em meio a tanta confusão, é que notícias jornalísticas e informações importantes precisam ser checadas sempre. Em uma época na qual essa checagem era, sem dúvida, bem mais difícil de ser realizada do que no século XXI, culpar os ouvintes de uma rádio pode ser bem pretensioso. Sob outra perspectiva, expor que a culpa é da rádio, por uma transmissão que informava previamente sobre a teatralidade da exposição, talvez também não seja o mais adequado.

Em resumo, a versão radiofônica de A Guerra dos Mundos foi uma espécie de alerta para seu próprio meio, para o rádio em si, porque a evidência de sua influência ficou muito clara. Soube-se, ali, que a penetração do que era transmitido poderia causar reações reais nos ouvintes; tão reais a ponto de causar um horror generalizado. O programa, aliás, não somente levou Welles a se tornar conhecido em todo o mundo e, como dito, a realizar Cidadão Kane três anos depois, mas é reconhecido como o programa que mais marcou a história da mídia no século XX.

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Somos refém da nossa imaginação?

O evento, além de tudo, teve suas influências sócio-políticas: gerou o programa de Defesa Civil dos Estados Unidos, foi utilizado em um discurso por Hitler, como um exemplo da fraqueza americana e, ainda, acabou se tornando objeto de pesquisa sobre histeria em massa — o primeiro estudo acadêmico sobre o tema.

Welles era mesmo um homem midiático. Ele não pararia de expor as interferências das mentiras sobre as verdades e como isso pode afetar a absorção do público; lançaria, pouco mais de 30 anos depois, o filme Verdades e Mentiras (de 1973). Neste, são questionadas, constantemente, as convenções estabelecidas através da dicotomia entre realidade e farsa.

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Depois de tantos anos, pode ser difícil relatar com exatidão o que aconteceu naquela fatídica noite de 30 de outubro de 1938. Sendo o horror em grande ou pequena escala, a questão pode recair sobre o poder da mídia e, especialmente, sobre a responsabilidade que se tem com o que precisa ser informação. Welles, ao 23 anos, tinha a intenção de apavorar o público — de acordo com relatos sobre a sua negativa em tranquilizar os ouvintes. Para mais, enquanto o supervisor da CBS, Davidson Taylor, pedia para que a transmissão fosse interrompida, ele (Welles) se recusava, mantendo o programa no ar.

Os tempos são outros. Hoje, 82 anos depois, é possível nos certificarmos — pelo menos a maioria de nós — de cada informação que nos chega por qualquer meio. Existem ferramentas que podem evitar a construção do pânico. Ao mesmo tempo, há uma facilidade muito maior na disseminação de notícias falsas como se fossem verdadeiras e uma replicação exponencialmente mais efetiva.

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É importante ressaltar o quanto o rádio, em 1938, era o único meio que poderia provocar reações tão efusivas do público. Por meio dessa mídia, o ouvinte ficava refém do seu imaginário, ilustrando mentalmente os cenários enquanto a narração e os depoimentos descreviam os acontecimentos. É um fato que tem raízes literárias e que, por isso, casou-se tão bem com a obra original de H. G. Wells, que fora escrita em tom jornalístico.

Somos cúmplices de um mundo distópico?

Porém, toda a magia pode influenciar negativamente o mundo. Precursor das fake news, o programa da CBS apelava para o emocional de quem o escutava a ponto de conseguir tanta afetação. Isso, no final das contas, é a base do neologismo da pós-verdade, sendo esta uma forma de modelar a opinião pública apelando para as emoções em detrimento dos fatos objetivos.

Então, ignorando-se os fatos, acaba que o jornalismo passa a ter a função não de informar, mas de buscar, de maneira incessante, comprovar o que foi dito. As informações perdem valor e tudo passa a ser um jogo de crenças. Isso faz com que conjuntos de valores se tornem necessários para a compatibilidade de uma notícia, circunstância que o psicólogo Leon Festinger relatou, em 1957, atestando que quanto mais próxima é a relação do ouvinte ou do leitor com uma informação falsa, mais difícil passa a ser convencê-lo da falsidade dessa informação.

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A transmissão na rádio de A Guerra dos Mundos, assim, completa 82 anos como se fosse uma jovem. Firme e forte, apenas com outro corpo. Tudo pode parecer um tanto quanto distópico nesse sentido, porque ela vem sendo replicada dia após dia em nossas redes sociais sem causar o mesmo pânico.

Talvez porque já estamos tão acostumados com as mentiras que, aos poucos, elas se tornaram nossas verdades. Ou, talvez, porque estejamos carentes de notícias que nos sejam identificáveis e, nesse caso, não somente aceitamos algumas pós-verdades e fake news, mas somos cúmplices de uma guerra que se aproveita do nosso emocional e constrói um mundo fictício para, supostamente, fazer-nos bem.